Crônica em estado Crônico 05
ou pequenas impressões sobre o cinema brasileiro
Esse negócio de emprestar livro é uma desgraça, vivo emprestando
e perdendo livros, uma das perdas mais sentidas foi
do livro de Glauber Rocha; e o pior não sei quem foi o criminoso, é
uma obra prima: O sekulo do cinema, assim mesmo com
"k". Neste livro Glauber Rocha faz declarações sensacionais,
uma delas é sobre o fato de alguns de nós considerar a palavra
cinema, uma abreviatura de cinema americano.
Assisti a muitos filmes nacionais ao longo dessa vida, e alguns ficaram guardados
com carinho na memória afetiva e
cultural. A primeira vez que fui ao cinema, que não existe mais e que
ficava na Rua João Ribeiro em Pilares, Rio de Janeiro,
levado pela minha avó, estava morando com ela por causa de uma enchente
que aconteceu em 1967 que nos deixou
desabrigados provisoriamente. O filme era de Mazaroppi, o nome não dá
para lembrar decorridos esses anos todos, perdeu -
se no emaranhado de memórias.
Sempre defendi ardorosamente o cinema nacional, sempre acreditando no sucesso
e capacidade de registrar a nossa
realidade, com um olhar brasileiro. Posso citar várias produções
desde da época das chanchadas de Oscarito e Grande Otelo
que assisti em preto e branco na televisão, aos filmes mais recentes.
Entre todas as experiências, uma das maiores foi assistir ao filme de
Mário Peixoto: O limite. O diretor e autor é uma
figura lendária da cinematografia brasileira, realizou apenas um filme,
rodado na região de Mangaratiba e Angra entre 1929 e
1931, filme mudo que provocou polêmica no seu lançamento e tem
toda uma lenda ao seu redor. Tirando todas as lendas, O
limite é considerado uns dos mais importantes realizados no mundo.
O filme ficou desaparecido, sendo recuperado por um fã , uma iniciativa
isolada, e exibido na cinemateca do MAM, no
ano de 1988, depois de quase ficar perdido para sempre. Foi especial também
porque acabara de conhecer Ana e fomos
juntos a cinemateca, chegamos com a sessão já iniciada, a sala
lotada, sentamos, no chão do corredor.
As cenas do filme são revolucionárias e inovaram a narrativa vigente,
com flash back, ângulos e tomadas ousadas, o
barco a deriva, os náufragos, as correntes, cenas que nunca mais me saíram
da lembrança, além é claro da presença de Ana.
O cinema brasileiro é um pouco náufrago, um pouco esse barco
a deriva, lutando contra a maré, tentando estabelecer
um mercado, ser uma indústria rentável que crie empregos e seja
a afirmação de nossa cultura. Somos sem dúvida uma das
mais importantes cinematografias do mundo, com produções de grande
impacto, mas sofremos uma concorrência desleal do
cinema americano que impõe até , uma forma de ver o cinema.
Ainda assim sobrevive o cinema brasileiro, alternando períodos de maior
ou menor produção. Durante a exibição do
filme fiquei atento e totalmente absorvido pelo impacto que causa, realizado
numa época heróica, por um jovem cineasta.
Encerrada a exibição o público presente reverenciou a produção
com uma sessão de aplausos longa, uma demonstração
raramente observada na exibição de qualquer filme, seja nacional
ou não.
Tenho a esperança que um sopro de criatividade e de investimento façam
o cinema nacional retomar o seu lugar de
direito, dominando o mercado de exibição, criando e cultivando
um público fiel e interessado no cinema brasileiro, com
respeito e orgulho, e garantindo a valorização cultural do país.
Lembro com carinho da exibição do Limite.
Flávio Machado
PS: Neste dia aconteceu o nosso primeiro beijo.Casei com Ana em 1990, Mário
Peixoto infelizmente faleceu, e o Limite foi
lançado em vídeo, mas por favor não me perguntem quando.