CINEMA na literatura
No Escurinho do Cinema
Aos sábados brigávamos ele queria Bergman eu queria dançar
mas o sueco sempre levava a melhor mais pela minha paixão recém-encapsulada
do que para adquirir cultura cinéfila porque eu gostava mesmo era
do Travolta e então íamos ao cinema e por três intermináveis
horas ele se mantinha estático movendo delicadamente os lábios
no acompanhamento febril de cada corte de cena como se nada existisse além
das imagens escandalosamente lúgubres daquela tela enorme e eu que
nem era besta nem nada arriscava um carinho na orelha ao que ele espantava
como se fosse mosca num ato reflexo de coçar o queixo mas o que
é que o queixo tinha a ver com a orelha? eu ficava muito sem graça
e em outra desastrada tentativa enfiava-lhe entre as coxas as minhas mãos
sem vergonhas e novamente ele pedia-me silêncio com os olhos apertando-me
fortemente os dedos numa fala muda "ei, sua aculturada, pres'tenção
no filme" e eu abria a boca achando tudo aquilo muito cacete que afinal
de contas cinema era lugar de amasso e beijo de língua oras eu só
tinha de-zes-se-te anos e queria namorar coisa que fazíamos depois
da fita quando ele me levava para a república onde morava com meia
dúzia de comunistas e justiça seja feita ele era um diabo
na cama e naqueles momentos quem dava as cartas era eu enquanto ele tratava
de desordenar todos os meus pontos GÊS a minha pele os meus cabelos
a minha vida e eu já nem era mais eu virava puta-gueixa-professora-mulher
de bombeiro-carmen- amélia-cecília e um dia ele sumiu e nunca
mais voltou chorei por cinco noites seis dias e no sétimo fui à
uma discoteca o tempo passou eu madurei namorei noivei casei pari dois
filhos virei mulher de empresário e ano passado coloquei silicone
nos peitos mas meu marido continua trepando regularmente duas vezes ao
mês e nos outros dorme o sono dos inocentes enquanto eu assisto sozinha
à alguma fita do Bergman e imagino-me aos gritos enquanto ele me
come entre sussurros. É, acho que sou feliz.
Mariza Lourenço