Sessão da tarde
Com ar orgulhoso, queixo erguido e braços cruzados, buscou o
que fazer, lamentando não haver trazido seu Kafka pela metade -
ótima ocasião para terminá-lo sem arranjar outras
desculpas, ironizou consigo mesma. Não falta muito, uns quinze minutos
para abrirem a sala, e seu olhar vagou pela rua e pela fila, analisando
rostos e roupas como se fossem objetos de pesquisa séria - como
uma ruiva tem coragem de achar que ficou bonita em pink? Como se adivinhasse,
a dita cabeça-vermelha a olhou nos olhos, envergonhando-a de sua
futilidade; afinal, a ruiva estava na fila de um clássico, não
podia ser alguém tão ruim.
Ficou prestando atenção no diálogo do casal atrás
dela, que versava, aparentemente, sobre uma agenda que o namorado-a-beira-de-ser-ex
havia encontrado. A candidata a ex namorada se defendia “Li há pouco
tempo um artigo dizendo que todo mundo deveria manter um diário,
para avaliar seu progresso e desenvolvimento mental”, e enquanto ela pensava
que seu próprio diário teria anotado o número de vezes
em que se sentia compelida a escovar os dentes ou a quantidade de dinheiro
que gastava inconsistentemente, o quase ex namorado dizia que ela tinha
a ele para avaliar seu progresso. Difícil de escapar dessa, pensou,
mas a garota tinha eloquência: “De onde vem esse ciúme afinal?
Quem é que criaria esse cavalo de batalha por causa de uma tarde
riscada na agenda? Quem é que trai alguém no meio da tarde,
que estupidez”.
Foi nesse momento que ela suspirou alto demais, provavelmente, o que
fez com que o casal se entreolhasse e começasse a fase de sussurros.
Ninguém consegue brigar sussurrando, portanto resolveram o assunto
de modo que ela jamais soube se a garota estava blefando ou a tarde riscada
era só uma metáfora.
Mudou o peso para a outra perna, sentindo-se desconfortável
pela primeira vez na vida, por estar na fila do cinema tão obviamente
só. Sou uma mulher independente, disse mentalmente, não preciso
de ninguém para ir a um maldito cinema e me beijar nas partes desinteressantes.
Ninguém palestrando sobre física quântica ou motores
de carros, ninguém zombando das mulheres estacionando na rua...
ninguém para me ensinar o valor ou a dimensão da perda, e
absolutamente ninguém para ser descoberto, no meio da tarde ou no
meio da noite, fazendo as malas e dizendo que havia acabado. Olhou em volta
uma vez mais, quem sabe achava algo que a fizesse pensar menos, afinal
esse era seu momento do cinema - só se haviam passado cinco minutos
da última vez que checara o relógio - bem, o relógio
do namorado da garota, que aliás quase lhe havia causado torcicolo,
Já deveria ter aprendido a usar relógio nessa idade, diria
sua mãe, sempre cheia de regras úteis para a vida. Talvez
devesse tê-la ouvido, especialmente quando lhe havia dito que casar-se
com alguém era mais do que ela conseguiria, embora na época
houvesse pensado que era pura inveja de quem criou uma filha com um pai
semi-vivo, que falava e andava e trabalhava mas não era capaz de
amar, inveja de que a filha dessa união indeterminada com o sujeito
oculto fosse afinal hábil o bastante para superar a análise
sintática da sua própria sorte e ser feliz. Enfim, talvez
devesse checar o relógio da ruiva de pink - com seu bom-gosto, talvez
fosse vermelho-sangue, e sorriu da própria ironia, não era
sempre o que a salvava da loucura? Ou talvez devesse simplesmente
voltar para casa, tomar anti-alérgico e dormir por 14 horas, assustando-se
com o quanto poderia ser bom matar o tempo desse modo.
O casal composto de desconfiança e persuasão se beijou
longamente enquanto ela suspirava novamente, pensando em como seria bom
sentir-se digna, Audrey Hepburn-digna. Não se preocupar com a unha
acabada de arruinar-se na porta do carro, com tanta dor no mundo era de
se esperar que seu egoísmo tivesse mais controle, não se
concentrar no fato de estar só na fila do cinema no domingo (não
deveriam haver somente crianças na sessão dominical?), não
pensar na mesa do seu escritório como uma tábua de salvação,
não enfrentar a terapia semanal como um dever a ser cumprido; havia
um livro que colocava como era difícil entender que a dor vinha
principalmente de tentar evitá-la, da tirania de querer coisas.
Quando eu me tornei alguém que teme falar de amor e quando o faz,
acompanha o sinal de aspas nas mãos? Quando me deixei levar desse
modo pela angústia de finalmente se perceber alguém que havia
começado a morrer quando nasceu - mesmo que houvesse sabido isso
toda a vida?
Completamente indiferente ao seu questionamento mental profundo ou
a influência de seus movimentos na sua frágil linha de pensamento,
a fila andou em direção às portas do velho cinema,
finalmente abertas. Olhos meio fixos, acompanhou o rebanho nietzschiano
e assistiu o trailer enquanto cogitava o que a trazia ao cinema sempre
que precisava de chão. O dado de realidade que aquilo lhe proporcionava
era algo quase esquizofrênico: na mentira da sétima arte conseguia
encontrar mais verdade que nos insights terapêuticos.
Tantos ângulos e perspectivas diferentes a faziam encarar a vida
como um grande carrossel - assim mesmo, infantil, um pouco assustador,
porém vivo e se mexendo. Tanta loucura e barulho, e ainda assim,
a segurança de que enquanto ele estivesse se mexendo, haveriam pessoas
reais nele, crianças chorando amedrontadas ou sorrindo e acenando
para os pais, entregues à própria noção de
que não precisa haver amanhã, dever de casa, castigo ou presente
depois da maravilha de rodar em um cavalo de plástico ao som de
uma música estranhamente insana. Pessoas nasciam e morriam
na tela, riam, choravam, se embriagavam com álcool e consigo mesmas,
e ela de alguma forma nascia, morria, ria, chorava e se alcoolizava com
a própria idéia de tudo isso ocorrer com sua alma. Quem queria
ser imortal se havia ainda a proposta de ser eternizado por uma câmara
em toda uma vida de duas horas cinematográficas? Provavelmente mais
pessoas como ela estavam acomodadas naquelas poltronas, aliviadas secretamente
pelo escuro somente interrompido pelo brilho da tela nas cenas diurnas.
Outras pessoas vivendo o dilema de esconder sua dor de si mesmas, talvez
até pessoas que esperavam a projeção começar
para cogitar a hipótese de que talvez, somente talvez, não
houvesse sentido na promessa de que contariam tudo um para o outro e jamais
se trairiam sem ser honestos. Que antítese mais ignorante era essa,
que supunha que não somente o ser amante buscaria outra metade que
não a sua eleita mas também seria consumido alternadamente
pela culpa e pela luxúria até o ponto de dizer em prantos
à sua ser amada que o havia feito? A ceia de Natal seguida da dieta
até o Ano-novo, seguido então de nova dieta até o
Carnaval, e assim contando-se os feriados como as catarses físicas
que correspondem à pressão de celebrar. Muito triste não
esperar nada das pessoas, pois se é um fenômeno consciente,
isso é admitir que não se confia nela o suficiente para achar
que vai corresponder às expectativas. Por outro lado, se se constróem
todos esses castelos em volta de algo tão infinitamente frágil
como um relacionamento se tende a sufocá-lo. Escolha do destino,
portanto?
Palavras no escuro da sua mente e da sala lhe davam um senso de completude
que poucas coisas conseguiam - transformar os erros em eventos simbólicos,
mistificando-os e tirando-lhes o verniz de vergonha para não ter
medo do que então serão ícones. O não
saber é tão irritantemente infinito, cogitou, quase feliz:
sua maior fraqueza se tornando sua força, à medida em que
fazia com que quase nada mais fosse importante de se perder. Estaria
sua capacidade de confiar permanentemente abalada? Imediatamente a imagem
se ligou ao fato de que haviam algumas roupas ainda a serem coletadas no
armário, teriam sido levadas?, e se forçou a voltar ao seu
mundo à velha moda, onde havia tristeza e desilusão mas
também sempre esperança e o clássico modo de amar
alguém com toda sua força, de modo que em algum sentido nada
estaria morto nunca.
Algumas coisas, contudo, estavam dando errado. Pareciam cenas mal gravadas,
ou era verdade que jamais teria uma tradição só sua?
Nunca conseguiria ter jantares imensos que houvessem se tornado pilares
familiares, não teria alguém para fazer-lhe companhia quando
a casa ficasse vazia, não comentaria livros sob as cobertas, não
discutiria a sua responsabilidade perante crianças que herdariam
um mundo que sequer era dos seus pais para deixar de herança, não...
o peso da negativa ia-lhe pesando os olhos. Sobretudo, jamais teria outra
chance de ser inocente - havia perdido essa oportunidade quando deparara
com as vozes baixas ao telefone, o alívio das vozes!, e as malas
semi-feitas. Que lhe havia restado? Quem eram as pessoas que se achavam
no direito de dizer que lhe havia restado saúde ou trabalho ou quaisquer
das coisas que lhe eram tão inúteis quando a esperança,
meu Deus, a Esperança havia se mudado entre camisas amassadas. Por
que não saúde, trabalho E Esperança, já que
deveria ser tão agradecida? Por que não o mundo ampliado
na tela (ou diminuído nela) cheio de reviravoltas que terminassem
em algum ponto? Aquele mundo que era o único que lhe levava perfeição
para a alma ainda, absolutamente seu paraíso mental - as poltronas
do cinema que lhe distanciavam do seu próprio sofá e seu
apartamento pseudo-ocupado. Fechou os olhos, entregue.
“... tragédia acontecida no Cine I, no centro da cidade, uma das construções mais antigas do centro velho: aparentemente o fogo começou no fundo da menor sala, que reprisava um clássico, e se alastrou rapidamente até a entrada, fazendo com que o resgate se tornasse quase impossível. A bilheteria foi também tomada pelo incêndio, mas o funcionário que atendia os fãs diz ter vendido mais de 100 entradas pelo preço promocional. Até o momento foram registrados 78 sobreviventes, 4 internações em observação e um caso fatal ainda não identificado de uma pessoa do sexo feminino; os bombeiros continuam no local.”
Letícia Casavella