CINEMA na literatura
Antonioni não conheceu Antônio
Se Antonioni tivesse conhecido Antônio, certamente
teria apontado para ele a câmera e um foco de luz. Mas Antonioni
vivia lá pras bandas de Roma e o Piauí era tão distante
que podia-se mesmo dizer não passar de mera abstração
geográfica. Assim, ignorado por Antonioni, Antônio seguiu
a sua vida de astro anônimo, lascando suor na lavoura e chupando
manga nas poucas horas vagas que tinha.
Aos domingos, Antônio vestia uma calça
rota de linho e, sem camisa, caminhava léguas até o cinema.
Não entrava. O dinheiro lhe era tão abstrato quanto o Piauí
para Antonioni. Mas não se avexava e, reconhecido do próprio
anonimato, sentava-se no banco da praça e assistia a um filme que
só ele via.
Quando a sessão terminava, Antônio
esticava o corpo dormente de tantas horas debaixo do sol e, como quem não
quer nada, acercava-se da saída do cinema só para assuntar
as falações da fita. Assuntando ali e acolá, Antônio
recolhia short cuts para as suas próprias fitas.
Quando retornava à fazenda, era recebido
como um herói. Chegava bamboleando o corpo, exatamente como um cabra
dissera que um tal de Jão Ueine fazia ao chegar numa vila, e mudo
entrava num casebre de pau a pique, enfurnado numa grota bem nas margens
do Poty.
Embora ele não permanecesse por mais de dez
minutos dentro da casa, as pessoas acocoradas no terreiro o esperavam com
a mesma paciência que esperavam a chuva.
Quando saía, Antonio vinha acompanhado da
mulher emprenhada, dos noves filhos, de uma garrafa de pinga e de uma caneca
de lata. Sentava-se num toco de banco e, entre um gole de aguardente e
um suspiro, desenrolava a fita.
No horizonte abria-se então uma tela vermelho
arroxeada, salpicada de flocos de nuvens que se recusavam a ir embora e
dar lugar à lua e às estrelas.
Não sei se por infinita bondade cósmica
ou mesmo por pura curiosidade, nesse dia a noite sentava-se sobre as águas
do Parnaíba e de longe, lá da fila de trás, espichava
os olhos para a tela avermelhada. E que tela! Que tela!
Com a língua sintonizada no girar do projetor
que só ele via, Antônio arribava as sete saias de Mérilin
Murrô com o bafo da lambreta alada de Oscarito e a aninhava nos braços
de Grande Otelo, que além de sambista era também motorista
de um avião dentado e bafento. O vilão, "o filho de uma égua
que só serve pra atentar", era invariavelmente Clark Gable (Antonio
tinha cisma com homem de bigodinho fino), que por sua vez já tinha
matado de fome "a pobre da dona Escarléti".
Quando no céu roxo da tela as Três
Marias e o Cruzeiro do Sul anunciavam um melancólico FIM, Antonio,
bêbado, entrava na casa. As pessoas em silêncio, com um suspiro
a aperrear a barriga, seguiam o rumo da noite a lhes apontar o sono.
Naquela noite Róliude ficava bem pro mode
das bandas de lá, entre Juazeiro do Norte e a Bahia. E não
sei se por milagre de Padre Cícero ou por pura coincidência,
um dia Antônio ficou sabendo que lá em Salvador um moço
fazia um filme.
Vestiu a calça surrada de linho, arrumou
a trouxa e tomou a estrada. Andou léguas, assombrado por Deus e
o Diabo na terra do sol.
Quando por fim chegou à Bahia, Glauber Rocha,
com uma câmera na mão e uma idéia na cabeça,
fez de Antônio um astro. Um astro de fulgurante figura a figurar
figurante. E, se não fosse pela morte que o tocaiou lá pelas
bandas do Crato, Antônio teria chegado a tempo de se ver na tela
das falações do final da sessão de cinema!
Marcia Frazão