ROSY FEROS
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Resenha do livro: Tecendo Diários, Editora Blocos, 1999, RJ,
no "Suplemento dos Poetas" de 08/set/2000, veiculado semanalmente por e-mail pelo
"PD-Literatura - O cyberjornal de literatura

                    Belo Horizonte, 08 de setembro de 2000

                    Editorial
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Sempre é digno de festas o lançamento de mais um livro de poemas.
Festejaremos o lançamento de "Tecendo Diários", de Rosy Feros na forma de um Suplemento dos Poetas Especial.
Pela publicação de alguns poemas selecionados, acrescidos de alguns comentários, esperamos homenagear mais uma poeta que engrandece a nossa literatura.

                                                     Adair Carvalhais Junior
 

A leitura pouco atenta de "Tecendo Diários" poderia revelar uma autora envolvida tão somente com seu mundo interior, sem contato algum com a vida de fora, já que os poemas de Rosy são, em essência, o resultado de um vasto mergulho em si própria.

"Papiro de Carne" serve bem como exemplo do que acabei de dizer e, mesmo sendo o último poema do livro, como perfeita
apresentação da poeta:

               "Escrevo como quem enrola papiro.
               Minha superfície de escrita é meu corpo.

               As idéias escorrem pelos cabelos
               e encharcam a pele, os ossos, as vestes.
               Escrevo como quem burila a pele de todo dia.

               Meu corpo é todo marcado de palavras...
               Palavras que são ganchos,
               que extraio de dentro da carne !
               Ganchos que ferem,
               mas que me fazem sentir mais a carne...

               Meus ditos são pedaços de carne.
               Carne crua e cheia de sangue.

               Não escrevo como quem planta árvores.
               Escrevo como quem revolve a terra."

Os versos de "Canhestra", escritos como que num repente, sem nos dar tempo de respirar, é disto que falam:

          "Meu jeito canhestro de ser como a pedra
          que guarda o que é e não se renega
          que grita a todos seu ser sem reservas
          é apenas um jeito de ser
          de rir e de acontecer
          de fazer festa
          e jogar meu xadrez
          com os dois peões:
          o deus das aflições
          e o demônio das tentações."

E se completam com esta declaração de propósitos de "A Mira Certa é Interna" que, já pelo título, expõe a essência da maior e mais importante busca da poeta:

               "A mira certa é interna
               Está ao centro altaneira
               altiva completa consistente
               Desafiando a lucidez
               do papo mais catedrático e coerente

               Quem sou ? E quem procuro ?
               Eu não estou e em vão me curvo
               À noite quero nascer
               e me desprender para a madrugada

               Quero romper com os tecidos
               dessa estrada
               que se curva aos meus pés
               vestidos em asas

               Com setas ligeiras
               munem-se meus olhos
               sem auto-piedade da própria cegueira."

No entanto esta seria uma visão equivocada e, ainda mais grave, estreita. Equivocada por que são pelos próprios versos que a poeta indica o caminho real que segue, como em "Como um Grande Vaso":

                    "minhas letras grandes dizem
                    do mundo que vejo
                    grande e largo

                    meus escritos são em mim
                    um trem sem repouso
                    um pasto largo

                    minha poesia põe fora
                    as falas graúdas
                    que dentro de mim guardo

                    a vida aflora em mim grande
                    gigantesca e farta
                    como um grande vaso

E estreita pois não há, como os poemas de Rosy bem o demonstram, uma clivagem rígida entre a vida interior e a exterior, melhor dizendo, a poeta vive o mundo exterior pela reconstrução que sua sensibilidade e sua necessidade essencialmente humana de expressão operam. O que há, em suma, é uma interpenetração entre o vivido e o exprimido, como bem dizem os versos de "Bordado":

               desvelo sem fim
               os novelos de mim

               anunciando o novo dia
               como quem termina uma lida

               cortando os fios do absurdo
               como quem bebe absinto

               gritando rouca ao sem-fim dos mundos
               como quem gira no carrossel dos loucos

               desvelo sem ter
               o bordado a tecer

               apenas riscando
               opções de viver"

E como reafirma, com todas as letras, o "Banquete"

                    "Tenho vontade de engolir o mundo,
                    conhecer seu sumo a fundo.

                    Tenho vontade de mastigar a vida,
                    com caroço e tudo.

                    Mastigar com meus dentes,
                    sentindo-lhe o gosto,
                    a pele, as sementes.

                    Quero comer da vida
                    como quem bebe da fonte,
                    saboreando seus gostos
                    como quem come um banquete."

A poesia de Rosy opera, de maneira original e extremamente sensível, esta interpenetração e, como teria que ser, com toda a
liberdade técnica necessária: há, ao longo do livro, uma diversidade de formas muito interessante, que vão desde aquelas
compostas com poucos versos, aparentemente jogados de maneira displicente sobre a folha de papel, como em "Infinito e
Desdobrado"

          "não sei escrever letras miúdas
          só sei escrever grande

          não sei escrever estreito e apertado
          não quero mutilar o meu lado

          só sei escrever largo e comprido
          rio infinito e desdobrado"

até composições mais complexas e elaboradas, como "A Tecelã"

               "nascimento amor e morte
               morte e ressurreição !
               ascensão ao pico mais alto
               mais alto que a salvação

               caminho por ladeiras infindas
               que me impedem de ficar em pé
               minha alma é toda descida
               e no mundo eu desço pé ante pé

               sonhos selvagens malcriação !
               meu desejo é a morte da ressurreição !
               palavras e gritos sufocados
               são meus antigos desejos finados

               descendo no mundo
               em minha grande noite escura
               eu teço os fios brilhantes
               de todas as minhas horas nuas

               o amanhã eu teço
               com os fios de meus cabelos
               que crescem como eu cresço

               o ontem são fios cortados
               despejados no degredo
               abismal de meus segredos !"

A liberdade técnica também se expressa pelo uso da rima, concebida como um recurso a mais e não como um grilhão dos quais os versos não se libertam. Percebe-se tanto em "Bordado" e "Banquete" os versos rimados fazendo companhia, muito naturalmente, a outros sem qualquer rima e, mesmo, poemas inteiros que as desprezam:

                    "não quero ser você
                    não quero ser mais ninguém
                    não quero ser ontem, nem hoje.
                    não quero ser amanhã.
                    só quero ser aquilo que sei
                    que não serei e não fui.
                    aquilo que sou.
                    sem mais, nem porém."

                    (EU)

Mas toda esta liberdade em momento algum deixa perder o que tem a poesia de mais significativo: o ritmo. Ao contrário, Rosy usa e abusa dos recursos mais diversos para imprimir aos poemas o ritmo perfeito.

Assim o uso, raro, de vírgulas, como nos versos de "Toque da Alvorada":

          "Eu sei
          que, quando abrir minha boca,
          minha alma se alargará
          e eu já não serei mais tão pouca."

          (...)

ou de interrogações, interjeições, quebras de versos e, até mesmo, do simples recurso da transposição do ritmo interior, simples e destituído de todos os signos gráficos que não sejam palavra e sua disposição sobre o papel:

               "Me sinto tão cheia de tudo
               sereia serena
               nadando no escuro
               espreitando ávida
               o sem-fim dos mundos
               esperando as aves
               que voam sem rumo
               sentindo que nascer
               é apenas morrer
               no eu profundo

               (NASCER É APENAS MORRER)

Esta diversidade impede que se encontre, ao longo do livro, um traçado formal pré-concebido: cada poema carrega uma história própria, um desenrolar temático e formal único.

No entanto, a autora consegue, apesar e talvez por causa desta diversidade, costurar a necessária unidade do trabalho pelo diálogo íntimo que os poemas constróem e que só poderá ser saboreado por aqueles que, instigados por este pequeno extrato, leiam a obra completa.

Afinal,

               "nosso destino é por demais extenso
               para perdermos tempo
               com pequenezas humanas

               nosso destino é um barco imenso
               quanto mais remamos
               mais o braço cansa

               nosso destino é por demais denso
               para nos perdermos em meio
               a tantas tramas

               nosso destino é um lugar intenso
               onde gostamos de estar
               por estar"

               (NOSSO DESTINO É UM BARCO IMENSO)"