Urha - Você começou sua carreira dramatúrgica
no teatro ou na TV? Fale deste início.
AN - Comecei a fazer teatro amador, ainda
em Botucatu, interior de São Paulo, onde nasci. Minha primeira peça
profissional, em São Paulo, aconteceu em 1977 — A FARSA DA NOIVA
BOMBARDEADA —; uma peca que lançou artistas como Miguel Magno e
Cida Moreyra, entre outros autores. Ficou apenas um mês porque foi
censurada pelo Armando Facão, ministro da justiça da ditadura.
Foi em 81 que consegui meu primeiro sucesso, LUA DE CETIM, que me deu o
meu primeiro Molière e outros prêmios. Foi a partir daí
que a televisão se interessou pelo meu trabalhão e a Globo
me convidou para escrever um especial sobre o Chico Xavier, com direção
do Vanucci. Depois da explosão de FELIZ ANO VELHO (em 1983, quando
ganhei meu segundo Molière e todos os prêmios da temporada),
aí veio o convite para fazer novelas. E a primeira foi LIVRE PRA
VOAR, onde colaborei com Walther Negrão (1984). A partir disso,
teatro e tv seguiram em paralelo.
Leila - "Ventania", sua peça de teatro atual esta em cartaz
em SP depois delonga temporada no Rio. Me parece que ela esta sendo mais
polemica para os paulistas do que para os cariocas, que amaram a peca.
A que você atribui esta reação?
AN - Foi o mesmo sucesso que pintou
no Rio. Mas houve reações mais fortes. Talvez São
Paulo identifique mais proximamente o conflito sexualidade - religiosidade
de que trata a peca, e isso dói mais na ferida do paulistano. Também
porque foi aqui que o Ze Vicente (de quem em termos a peca fala)
morou a maior parte do tempo e produziu muito de sua obra. O paulistano
é mais conservador que o carioca em muitos aspectos, embora a cidade
em si não. Os valores daqui são diferentes e a postura do
Rio em relação ao teatro é mais light (no bom sentido).
Urha - Para você qual a diferença fundamental
entre escrever para o teatro? E para a TV?
AN - Acabamento. No teatro, você
tem a possibilidade de ficar muito mais tempo gerando o texto, dando a
ele o acabamento necessário. Na televisão, por forca da pressa,
isso é impossível. Você tem de parir um capitulo de
novela por dia e tudo bem... No teatro também existe uma integração
muito mais intensa entre autor, diretor e elenco. Na televisão,
isso acaba se diluindo. Mas eu gosto muito dos dois veículos e sinto
muito prazer escrevendo para mundos tao diferentes.
Urha - Além de escrever, o que você gosta
de fazer?
AN - Eu ouço muita música, leio
muito, adoro artes plásticas (vejo todas as expo que posso), vou
ao cinema, ao teatro, namoro, jogo cartas e bingo, viajo...
Leila - Você trabalha melhor "sob pressão"?
AN - Na televisão sim, mesmo porque
é inevitável. Mas, quando escrevo para o teatro, quero toda
a paz do mundo. Nem sempre isso é possível, mas quando consigo
me isolar do mundo para criar uma peça, é dos deuses.
Leila - E "inspiração"... e' "dom divino"?...
AN - Não, não acredito nisso. Acho
que todo autor é antenado, tem insights, consegue visualizar muita
coisa... Mas inspiração é um conceito antigo... Também
não acho que seja aquela historia de transpiração...
Para mim, escrever é exercício sim, mas as vezes as coisas
brotam em borbotões, como se fosse uma escrita automática,
e você acaba nem mexendo muito no texto. Outras, você escreve
e reescreve mil vezes uma cena, para chegar naquilo que está querendo
dizer.
Leila - Qual a novela que lhe deu mais trabalho? E a que
lhe deu maior alegria?
AN - A novela que mais me deu trabalho
foi SALVADOR DA PÁTRIA, quando escrevi com o Lauro Cesar Muniz.
Sofremos pressão de todos os lados, o Lauro ficou doente e levei
a novela sozinho durante um bom tempo. Foi estressante, embora o resultado
tenha sido muito bom. É a novela com a segunda melhor audiência
da Globo (74%). As que me deram mais alegria foram PRÓXIMA VÍTIMA,
que transcorreu em vôo cruzeiro todo o tempo e mobilizou todo o pais,
graças a trama muito bem armada do Silvio de Abreu e O AMOR ESTÁ
NO AR, que, além de ser a minha primeira novela solo, sinto uma
harmonia muito grande com direção, com os co-autores Bosco
Brasil e Filipe Miguez, e a repercussão que provoca, mesmo sendo
uma novela de seis horas, hoje um horário muito complicado.
Urha - Em literatura, quais os autores preferidos
em prosa e verso?
AN - Em teatro, Tchecov, Jorge Andrade,
Nelson Rodrigues, Plínio Marcos e Eugene O Neal. Em literatura,
Proust, Balzac, Machado, Eça de Queiroz, Flaubert, Genet, Updike,
Fante, Gertrude Stein e Joyce. Em poesia, Rimbaud, Sylvia Beach, João
Cabral, Mallarme, Baudelaire, Fernando Pessoa, Florbela Espanca, Kavafis.
Urha - Voltando ao teatro: quais são seus
novos projetos?
AN - Colocar em cena uma peca escrita em
89, minha única inédita, PARIS - BELFORT, que e uma releitura
muito pessoal das Três Irmãs, de Tchecov; escrever a terceira
parte da minha trilogia sobre o discurso moderno, que começou com
a ÓPERA JOYCE, seguiu com O RETRATO DE GERTRUDE STEIN QUANDO HOMEM
e terminará com O BARCO BEBADO E SEU TIMONEIRO, sobre a relação
Rimbaud e Verlaine. Também quero escrever o quarto ato da LUA DE
CETIM, abarcando o período Collor.
Leila - Como é o seu dia? Sobra tempo para o lazer?
AN - Quando estou escrevendo novela, não.
Nem para o lazer sexual. Mas quando estou em ferias da TV, procuro sair
de São Paulo, ir a Paris, ver muito teatro e cinema, ir a concertos,
encontrar amigos, jogar conversa fora etc...
Urha - E' possível fazer novos amigos, a esta altura da
fama?
AN - Sim. Você é um exemplo
disso. É muito mais difícil do que antigamente, pois o approach
das pessoas é meio esquisito. Sempre existe aquela historia de imaginar
que ser meu amigo poderá abrir portas. Besteira. A gente abre portas
pelos méritos próprios e não apropriados de outras
pessoas. Também é complicada a aproximação
afetiva, sentimental, sexual... Porque sempre fica a impressão de
que as pessoas estão transando com a imagem publica e não
com o Alcides de sempre... Mas tenho levado bem isso. Eu procuro me resguardar,
sem abrir mão da minha liberdade. Até mesmo a liberdade de
me dar mal em determinadas situações.
Urha - O que você gosta menos na vida?
AN - A falta de respeito. Isso inclui a
falta de respeito aos direitos humanos, a falta de respeito ao nosso quotidiano,
a falta de respeito que as vezes nos mesmos sentimos com relação
a gente... Não posso deixar de sofrer quando vejo a incompreensão
do governo com as crianças de rua, com os sem-terra, com os doentes
e idosos... Dói. Dói muito. A vida fica feia e suja se compactuamos
com isso.
Leila - O que você preza mais nas pessoas?
E nos seus personagens?
AN - A integridade. Tanto nas pessoas como
em personagens. Porque, para mim, integridade não é sinônimo
de maniqueísmo. A gente pode errar sim, mas tem de ter a humildade
e a nobreza em enxergar isso... Claro que, quando falo de pessoas,
isso é fundamental, pois inclui caráter (não suporto
pessoas de má índole)... Nas personagens, muitas vezes, carrego
nas tintas, para que os signos de vilania sejam decodificáveis de
forma mais simples e ampla, principalmente na televisão.
Leila - O teu teatro sempre foi assim cortante como "Ventania"?
Por que a mudança e quando ocorreu?
AN - Meu teatro era mais condescendente.
Talvez eu tivesse medo de colocar no palco meus fantasmas, sem nenhum tipo
de tapadeira. Por mais chocantes e duros que fossem. Quando comecei a ver
que minha geração - muitos amigos, quase todos - tinham morrido,
ou na época da repressão, ou depois, com a aids (outra forma
de repressão), eu percebi que tinha de colocar em cena todas as
minhas coisas - doessem ou não em mim ou no espectador. Acho que
esse dilaceramento sempre houve. Estava oculto ou preservado em algum ponto,
muitas vezes recoberto pela poética da minha palavra (que não
abandonei nem pretendo, pois gosto), mas agora é tudo ou nada. Não
tenho o que perder. Não vou deixar passar a vida sem que as pessoas
saibam que o Alcides Nogueira pensa desse jeito. É a minha forma
de estar inteiramente no mundo, embora o Abujamra me chame de o guerrilheiro
do nada (risos). O que me deixa muito feliz!
Urha - Como se da' o seu processo de criação?
AN - Basicamente pela maturação.
Isso, tanto no teatro quanto na tv. Pinta algo em minha cabeça.
Isso vai adquirindo contornos, delineamentos. Vou deixando, deixando...
Um dia, sinto a necessidade e a urgência de colocar isso no papel.
Aí a coisa se torna quase física. Entra a fase do exercício
(se for teatro). Escrevo, escrevo, para ver o que é melhor... Como
disse antes, muitas vezes a coisa vem com tudo. ÓPERAJOYCE, que
considero um dos meus melhores trabalhos, nasceu em um dia. Foi como se
estivesse tomado pela energia da escrita. PARIS-BELFORT me consumiu seis
meses de escrita exaustiva.
Urha - Como e' estar no primeiro time da Globo?
AN - Por um lado, extremamente gratificante. Muita
gente quer isso e não consegue. E eu não consegui de graça,
mas por conta de muito trabalho. Foram nove novelas como colaborador e
depois como co-autor. Vem aquela sensação de conquista, de
reconhecimento. Por outro lado, as dificuldades que citei de aproximação
com as pessoas, de viver mais calmamente a vida, isso tudo fica mais difícil...
O importante para mim não é estar no primeiro time da Globo,
mas ter a possibilidade de mostrar meu trabalho e ver que a mídia
reconhece, muito mais pessoas são atingidas por ele, as portas para
o teatro se abrem mais facilmente pois se trata daquele autor da novela
x...
Leila - "O amor esta' no ar" e' a primeira novela
que você assina sozinho. E' uma novela romântica? Você
acha que só o teatro pode veicular obras fortes, que tratem de tabus
e preconceitos?
AN - O AMOR ESTÁ NO AR tem sua dose
de romantismo sim. Eu fui buscar em Jane Austen, na sabedoria dela, muita
coisa que está na minha historia. No horário das seis é
muito mais difícil colocar temas mais polêmicos. Mesmo assim,
estou tratando do judaísmo. É a primeira vez que se vê
isso na tv brasileira. E é incrível, pois temos no pais a
terceira maior colônia judaica do mundo. Também falo de ódio,
de poder, da troca de dinheiro... Em a PRÓXIMA VÍTIMA, mesmo
com muitas limitações, foi possível tratar da homossexualidade
e do racismo de forma muito clara e digna. Obviamente no teatro tudo isso
é mais fácil. Mas atinge menos. Um capitulo de novela da
Globo é visto por milhões de pessoas. Uma obra teatral, pois
mais sucesso que faca, não leva mais que milhares de pessoas, durante
toda a temporada.
Leila - E tem OVNI na novela, não é? Você
acredita em UFOS?
AN - Acredito sim. Acho muita impertinência
e presunção do terráqueo achar que está sozinho
nesse universo todo. Mas na novela o assunto entra de forma diferente que
no ARQUIVO X ou na JORNADA NAS ESTRELAS, por exemplo. A questão
da ufologia, na minha novela, está diretamente ligada aos conflitos
interiores vividos pela personagem da Natalia Lage, a Luiza. Fica sempre
a duvida se ela realmente está mantendo contatos ou tudo aquilo
não é a forma que ela encontrou para falar dos seus problemas,
para exteriorizar suas dificuldades com o mundo, com as pessoas...
Urha - Fale da sua experiência com os outros autores
com os quais trabalhou. Eu adorei trabalhar com alguns deles.
AN - Sou extremamente grato ao Walther
Negrão, que me ensinou o beabá da novela, com toda a sua
generosidade. Abriu seu baú de experiência e disse: pega,
Alcides, e se vira... Foi maravilhoso. O Silvio de Abreu continua sendo,
alem de um autor a quem sempre recorro para me dar dicas, para fazer uma
boa analise do que estou fazendo, um amigo de todas as horas; adorei trabalhar
com o Gilberto Braga, que tem uma sensibilidade fantástica... Com
outros, a coisa foi mais difícil. Uma co-autoria sempre esbarra
na questão do ego, da criatividade que se choca... em muita coisa,
com as quais precisamos lidar com luva de pelica. E nem sempre isso acontece.
Aí, surgem situações de choque, magoas etc...
Leila - Você sente influencia de algum autor em particular
em suas obras?
AN - No teatro, sinto muito a influencia
de Tchecov e Jorge Andrade. E de todos os poetas que amo. Porque meu teatro
chega a ser quase um poema dramático, tal a força com que
a poesia me domina.
Leila - Muitos intelectuais discordam de que novela de
TV seja literatura. E para você? Por que?
AN - É literatura sim. Talvez sem o acabamento
desejado. Se pudéssemos escrever um capitulo por semana, com certeza
teríamos sempre belas cenas, pungentes, dolorosas, alegres, doidas,
criticas etc... Mas a pressa prejudica isso. No entanto, a televisão,
no Brasil, acabou suprindo a leitura. Infelizmente, claro. Mas melhor ver
um bom especial ou uma novela bem escrita (e há muitas), do que
continuar absolutamente fora do jogo das idéias.
Urha - E como tem sido sua vivência/experiência
com os vários diretores de teatro com os quais você
tem trabalhado?
AN - Eu me dei muito bem com quase todos. Sempre
houve troca, respeito, entendimento. Claro que o filtro do diretor nem
sempre é o mesmo do autor. Nem a óptica. Mas a somatória
desses filtros, juntando-se a maneira como o autor veste a personagem,
provoca uma obra maior do que aquela que está no papel. Particularmente,
alguns diretores conseguiram a tradução do meu universo de
maneira muito bonita. O Marcio Aurelio, o Abujamra, o Paulo Betti, o Gabriel
Vilella, o Francisco Medeiros, foram diretores que souberam exatamente
o que eu estava querendo dizer e, não abandonando em momento algum
o conceito estético deles, conseguiram um casamento maravilhoso
entre texto e encenação.
Leila - Você sempre quis ser escritor? Sempre acreditou
que ia dar certo?
AN - Sempre quis ser escritor. Quanto
ao dar certo, nunca me preocupei com isso. As coisas foram acontecendo
de forma natural, como um rio que corre pela aldeia... Deram certo, ainda
bem. Se não tivesse sido assim, eu continuaria escrevendo. Talvez
tivesse de achar outra forma de sobrevivência e seria infeliz. Mas
eu não abriria mão nunca da minha escrita. É o meu
canal com o mundo. Não há como viver sem ele.
Urha - Quem mais o incentivou na sua carreira?
AN - Minha família sempre foi muito
ligada as artes. E alguns professores. Tive a sorte de pertencer a uma
geração onde a manifestação artística
era uma forma de posicionamento como cidadão, e isso me deixou muito
mais a vontade para ir em frente. Não sei como hoje as coisas acontecem
para quem começa uma carreira de escritor, ou de pintor, ou de musico.
Houve muitas vezes em que as coisas pareciam estar minguando, principalmente
durante a ditadura. Mas acho que, como bom escorpiniano, consigo sobreviver
e renascer.
Urha - E a Internet, entrou pela sua vida? Como?
AN - Como uma teia mesmo. Que foi me envolvendo.
Comecei como curioso. Sou muito curioso com todo tipo de comunicação,
e todo tipo de modernidade. Hoje não uso tanto a net como fazia
no inicio. Cheguei a ficar dias e dias conectado, principalmente em chats
e visitando sites americanos... Agora estou mais controlado, mesmo porque
não tenho muito tempo. Mas a net me ajudou a conhecer pessoas incríveis
e a reencontrar outras. Você, Urha, conheci por meio da net, e a
Leila eu reencontrei. O seu livro, Urhacy, sobre os chats, é lindo
e desvenda de maneira brilhante esse mundo virtual. As pessoas devem le-lo,
para entenderem porque a net hoje é realmente um grande canal, que
mitiga um pouco a solidão do final de milênio.
Leila - Que dica você daria para os autores que estão
começando?
AN - Ler, ler muito. Principalmente poesia, que
é a síntese de toda a palavra e de toda a emoção.
E tentar todos os canais, não importa quais sejam. Teatro, literatura,
televisão... E sem preconceito. Há espaço para todo
mundo...
Urha - E as suas poesias, saem da gaveta?...
AN - Por enquanto não. Ainda não
me sinto um bom poeta. A poesia é a mais difícil tradução
das emoções, porque é contida e espraiada ao mesmo
tempo. Cálida e cortante. Verborrágica e econômica.
Não, ainda não estão maduras. Um dia sairão.