Ana Paula Tavares
nasceu em Lubango, província da Huíla, sul de Angola, em 30 de outubro de 1952. Estudou História na Faculdade de Letras de Luanda e de Lisboa. Posteriormente, em 1996, concluiu o Mestrado em Literaturas Africanas. É membro da União dos Escritores Angolanos (UEA), da Associação Angolana do Ambiente (AAA), do Comité Angolano do Conselho Internacional de Museus (ICOM), do Comité Angolano do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (ICOMOS) e da Comissão Angolana para a UNESCO. Ana Paula é uma das mais importantes vozes femininas da atualidade no referente à poesia angolana. Publicou Ritos de Passagem, poesia, 1985; O Sangue da Buganvília, crônicas, 1998 e O Lago da Lua, poesia, 1999.
CP. Dentro da poesia de gênero, ela deve ser tomada
como lugar específico no espaço e no tempo?
APT. Sim. É muito recente este fenômeno de haver
uma consciência do "eu feminino" e uma tentativa de reivindicar este
espaço que ele comporta. Mas também não podemos interpretar,
mesmo em relação às novas tendências,
mesmo em relação à coisas que surgiram há pouco
tempo, não podemos interpretar isto como uma poesia de gênero.
Digamos que algumas mulheres, sobretudo a partir dos anos 80, começaram
a deslocar o centro onde o sujeito poético estava muito fincado.
Então, há uma poesia que surge falando da problemática
de ser mulher numa sociedade africana como a nossa.
CP. Mas não necessariamente uma poesia feminista...
APT. Não.
CP. Existe algum tipo de preconceito com relação
à poesia escrita por mulher em Angola?
AP Não. Não existe assim generalizado. Não
existe esse preconceito. Há preconceito em relação
à poesia em geral. Por outro lado, a poesia e a escrita ainda funcionam
como um argumento poderoso, contestatório. O escritor possui um
estatuto muito particular naquela sociedade.
CP. Aqui no Brasil, a poesia é vista como um gênero
menor. Em Angola também?
APT. Lá também acontece. De tal maneira
que eu penso que alguns escritores que se iniciaram como poetas e, mais
tarde, perambularam como contistas, acabaram por percorrer o caminho
do romance, como se o romance fosse o único gênero que
desse um
estatuto ao escritor.
CP. Como também com relação ao mercado.
O romance é mais veiculado...
APT. É claro. Não há uma idéia de
marketing, da política das editoras, mas há no início
uma idéia... Ocorre como se a pessoa tivesse que fazer um concurso
e depois atingisse um estado de maioridade no momento em que escreve um
romance.
CP. Você pensa em escrever um romance? Você gosta
da prosa?
APT. Eu gosto da prosa, gosto de escrever em prosa. Mas
a mim o romance não faz muita falta. Poderia chegar a ele ou não.
Mas não tenho nenhum projeto. Há sim algumas coisas que eu
gosto... Em torno de histórias de mulheres, mulheres muito fortes...
São mulheres que eu gostaria de ver como personagens... Não
sei, vamos ver...
CP. Ao escrever você se preocupa em passar uma mensagem
específica ao seu leitor ou escreve para você mesma?
APT. Eu acho que ninguém escreve totalmente para
si próprio. A pessoa escreve... E eu acho fácil dizer isso,
pois durante muito tempo escrevi e não publiquei. Mas a pessoa escreve
sempre pensando em alguém.
CP. Você se influencia por esse leitor?
APT. Quando eu tento escrever, não há maneira
nenhuma de pensar que existe um leitor. Eu escrevo e tento encontrar a
vida própria em cada coisa que escrevo. No fundo, toda a gente escreve
e espera um dia poder publicar.
CP. A questão do erótico refere-se à sociedade
tradicional ou mais à sociedade urbana?
APT. Eu acho que quando esses assuntos se pegam, nós
não podemos separar as duas sociedades porque o clichê é
a idéia de que a mulher angolana é a mais livre, a mais sensual,
é um clichê generalizado, pois a sociedaade africana cobra
um certo papel da mulher; como ser uma boa mãe, uma boa esposa...
Quando na poesia há uma referência a esta temática
do corpo, da sensualidade, não pensamos numa única mulher,
mas em todas as mulheres. Sendo assim, as duas sociedades, de formas diferentes,
conservam seus rituais.
CP. Então, essa visão de eroticidade por
causa das cores, das vestimentas, enfim, dos ornamentos que se utiliza
a mulher africana é uma visão que vem de fora?
APT. Sim, é uma visão que vem de fora. A mulher
africana tem uma relação natural com o seu corpo, apenas
isso.
CP. Você nota certa diferença, comparando essa mulher
com a mulher brasileira, no que tange ao envelhecimento? Há tanta
preocupação em não envelhecer? Na África, isso
é mais brando?
APT. Muito mais, mesmo na sociedade urbana. Não quer
dizer que na sociedade urbana não exista uma classe de mulheres
muito grande que, se tivessem possibilidade, iriam aderir à essas
cirurgias corretivas... A preocupação com a beleza, com os
cuidados do corpo é mais visível nas mulheres
solteiras, pois as casadas, as mães e as avós, não
fazem disso seu objetivo primordial.
CP. Com relação ao casamento, o homem exerce
certo poder sobre sua mulher? Essa mulher é
submissa? Geralmente trabalha fora, ou não?
APT. Sim, trabalha fora porque não há como não
trabalhar fora. Em Angola, trabalhar fora tem um sentido muito largo:
não é só ter um emprego, trabalhar como
doméstica ou numa universidade. É participar do chamado "mercado
informal" que, de certa meneira, engordam e engrossam o pequeno orçamento
familiar.
CP. Esta participação feminina faz com que o homem
respeite este status adquirido pela mulher?
APT. Não sei, acho que não. Apesar de a mulher
possuir certa independência financeira, dentro de casa a submissão
existe.
CP. Quais são os pensadores e poetas que têm influência
em sua formação como escritora?
APT. Eu citaria três poetas angolanos que tiveram muita
influência no trabalho que eu fiz, de uma maneira ou de outra: Davi
Mestre, Arlindo Barbeitos e Rui Duarte de Carvalho. Os poetas brasileiros;
Bandeira e Drummond, eu diria que são minhas referências diretas.
Mas, em determinadas épocas da minha vida, fizeram parte de meu
universo literário: Murilo Mendes, Clarice Lispector, Octávio
Paz, Soyinka... Tudo isso são referências.
CP. Nessas leituras, você buscou a poesia mais
romântica ou a mais realista, forte, que denotava a sociedade, ou
que buscava a religiosidade?
APT. Nunca fui à procura de uma poesia por
ela ser mais romântica ou mais realista. Gosto da poesia que me toca
de alguma maneira, que me impressiona.
CP. Quais as leituras que está fazendo no momento?
APT. São muitas, envolvendo as Ciências Sociais,
a História, a Literatura... Há algumas brasileiras, como
Adélia Prado.
CP. Há uma influência trascendental na sua escrita
poética? Como você colocaria Deus, ou algo maior na
religiosidade, dentro da sua poética?
APT. Eu acho que Deus está muito ausente em todo o meu
trabalho poético, pelo menos daquele que é feito
de forma muito consciente, como um trabalho pessoal, que não tem
por detrás uma carga, uma influência da poesia oral angolana,
poruqe eu não tenho como fugir das referências a Deus que
vêm já no trabalho de base que faço. Sendo assim,
fico meio dividida entre uma coisa e outra.
CP. Sim, pois eu notei que você faz uma referência
ao "Cântico dos Cânticos" e talvez alguma referência
a Deus, a alguma crença...
APT. Eu não posso deixar de pensar que eu fui educada
no seio de uma família religiosa; fui educada como católica,
cresci indo à igreja.
CP. Olga Savary, numa entrevista, coloca o elemento do erótico
enquanto vida. Ela fala que, talvez, não acredite em Deus.
Mas, como ela acredita na vida, essa vida seja Deus para ela... E
isso vem do erotismo... E quando se fala em erotismo, muitos o vêem
pelo lado ruim... Então eu acho muito bom enxergarmos o erotismo
enquanto vida!
CP. Existe alguma influência dos escritores modernos brasileiros,
do Movimento Antropofágico, na literatura angolana?
APT. Não, talvez não uma relação
direta e aberta como aconteceu em Cabo Verde, mas toda a geração
que escreve em Angola depois dos anos 40, a partir de 1945, talvez, é
uma geração que inclui todos os escritores brasileiros. De
Mário e Oswald de Andrade, Drummond, Manuel Bandeira, Graciliano
Ramos, José Lins do Rego, Jorge Amado; toda a gente de várias
gerações... Antes de Jorge Amado ser transformado em moda,
muita gente leu suas obras.
CP. Em termos de poesia, me parece, que o mais lido lá
é o Manuel Bandeira...
APT. Em determinada época... A geração
poética mais nova que surge nos anos 80 é uma
geração que já não leu tanto Manuel Bandeira,
leu um certo Drummond e buscou poetas mais novos como Manuel
Prates, por exemplo, que foi muito lido nesta geração
nova.
CP. Como historiadora, qual a importância do
conceito "revolução" para a formação literária
angolana?
APT. A literatura, em determinadas alturas foi profética,
esteve antes da revolução, muitas vezes como elemento mobilizador
dessa mesma revolução. Já no "Vamos Descobrir Angola",
uma literatura de manifesto, uma literatura panfletária em torno
da angolanidade, a partir de 1948.
CP. A citação de provérbios, presente em
sua obra, recupera uma dimensão africana na literatura?
APT. Tenta. Mas não podemos esquecer que literatura é
literatura, tudo isso é artifício... Aquela forma da tradição
oral surgiu para cumprir um determinado papel e o que a poesia faz é
retirá-la de seu próprio contexto e refazer essa mesma poesia.
Eu trabalho com isso e me debato com esse problema entre desrespeitar
a fórmula da tradição oral, para trazê-la até
nós, e chegar nela para retrabalhá-la. É um desafio...
CP. Existe alguma coletânea sobre esses provérbios?
APT. Existem provérbios coletados desde o século
XVII, antes foram reunidos por padres capuccinos, padres da Companhia de
Jesus, e depois, a partir do século XIX, existe uma série
de trabalhos de sistematização e organização
dessas obras.
CP. Como você acha que seus poemas interagem com
seus leitores e na Angola de hoje?
APT. A repercussão dos meus poemas, para mim, tem
sido uma grande surpresa, pois eu não esperava que fossem tão
bem acolhidos. As pessoas gostam, compram! O primeiro livro esgotou rapidamente,
o segundo livro também tem vendido muito... As crônicas,
as pessoas também gostam... Há um eco de uma importância
conferida à minha poesia que eu, francamente, não esperava!..
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Entrevista concedida à Claudia Pastore durante
o V Encontro de estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa,
promovido pelo Centro de Estudos Portugueses e a Área de Pós-Graduação
em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa da FFLCH/USP
(31/10 e 1/11/2000)