“José Saramago:“ESCREVO PARA DESASSOSSEGAR”
Cada lançamento de um livro seu levanta expectativas. Não em vão estamos falando de um dos prêmios Nobel mais respeitados dos últimos anos. Sua última novela, A Caverna, fechou uma festejada trilogia iniciada com Ensaio Sobre a Cegueira, e continuada com Todos os Nomes, que questiona de forma filosófica a humanidade e sua desrazão. “Entramos na era da burocracia absoluta, caminhamos para a ignorância. O homem, cercado de informação, perplexo, perde sua capacidade de indignação, de racionalidade mínima”, disse o escritor.A geração de Saramago, talvez a mais expressiva desde Eça de Queiróz, tem como principais representantes, além dele, Antonio Lobo Antunes, Cardoso Pires, Maria Gabriela Llansol e os poetas Al Berto e Herberto Helder. Nascido em 1922, numa aldeia chamada Azinhaga, no Alentejo português, a região sul do país onde se produzem azeitonas, cortiça e trigo, José Saramago nunca pensou em tornar-se escritor e só comprou seu primeiro livro aos 18 anos. Aos 25 escreveu e publicou a novela Terra do Pecado, voltando à literatura depois dos 40, com os versos de Poemas Possíveis, de 1966. Trabalhou como mecânico, desenhista, editor e jornalista do importante Diário de Notícias e, em 75, desempregado, resolveu não procurar emprego e sim escrever. Publicado em 40 idiomas, é autor de Levantando do Chão, O Ano da Morte de Ricardo Reis, História do Cerco de Lisboa, Memorial do Convento, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, entre outros.
É o meu terceiro encontro com o famoso escritor português. Havia entrevistado-o em 1997 e certa vez, cobrindo a abertura de uma exposição fotográfica do brasileiro Sebastião Salgado, no Partido Comunista Português, ele encontrava-se presente. Conheço pouco da sua criação literária, não é um escritor que me interesse o suficiente. Desta vez, a entrevista foi marcada num café em um edifício de Restauradores, pleno centro de Lisboa. Da alta varanda vê-se o imponente Castelo de São Jorge, as colinas melancólicas, o rio Tejo e pombas gordas e barulhentas. Saramago, calvo, de óculos, sentado numa cadeira ao lado da bonita esposa, a espanhola Pilar del Río, recebe o sol inclemente nas costas. Sólido, elegante e cordial assina um exemplar de A Caverna para um jovem garçom, que olha o escritor com admiração. Ele prefere viver na vulcânica ilha de Lanzarote, seu refúgio cercado de azul atlântico no arquipélago das Canárias. É onde escreve duas páginas por dia de sua literatura. Mesmo assim, pelo menos uma vez ao mês visita Lisboa. Não existem palavras vazias para o autor de Jangada de Pedra. Suas mãos se movem expressivas, as sobrancelhas sobem e descem, e o olhar é melancólico como os fados de Amália Rodrigues. A entrevista ocorreu numa atmosfera cálida. Nem mesmo o seu sorriso irônico provocou qualquer contratempo. (AJ)
* Antonio Júnior - O senhor tem uma relação difícil com Portugal, inclusive vive em outro país. Mesmo assim os portugueses insistem em colocá-lo como representante oficial deste país.
José Saramago - Eu não posso e nem quero representar Portugal. Nada do que penso transmite tal idéia. Quanto a viver aqui, por que tenho que o fazê-lo depois da infame proibição de O Evangelho Segundo Jesus Cristo ? Fiquei indignado e triste e as circunstâncias me levaram a viver em Lanzarote. Além do mais, Jorge de Sena vivia no Brasil e depois nos Estados Unidos, Eduardo Lourenço vive na França e muitos outros escritores e poetas viveram ou vivem fora daqui. O importante é que pago os meus impostos. Nunca houve uma ruptura com o meu país. Não sou um exilado como dizem os meios de comunicação, que chegaram a me chamar do Salman Rushdie português.
AJ - Volta sempre a sua pequena aldeia no Alentejo?
JS - Estive lá um dia desses. Mas acredito que sou filho do tempo em que vivo e não do lugar onde nasci. Digo porque, a vila onde nasci já não é a mesma depois de 70 anos. Mudou completamente a paisagem. Haviam extensões incríveis de oliveiras que foram arrancadas. Quando chego ali, me encontro em outro mundo, que não é o mundo da memória.
AJ - O senhor vive numa ilha tranqüila. Não se sente distante do mundo moderno?
JS - Não vive distante do mundo. Estou sempre viajando, venho a Portugal todos os meses. E escrevo novelas que provam que tenho um certo interesse e algumas idéias sobre o mundo e sobre os seres humanos.
AJ - O senhor acredita num mundo melhor?
JS - Acredito que temos que fazer algo por um mundo mais justo, buscar soluções para os problemas. Efetivamente, não adianta a crença num mundo melhor se continuarmos de braços cruzados, apenas acreditando em conceitos como esperança e utopia. É preciso indignarmo-nos. Ou melhor, deveríamos refletir seriamente sobre o que está acontecendo no mundo, na economia, na ecologia, na desigualdade, na indiferença, no racismo.
AJ - Por que o senhor evita qualificar-se como pessimista?
JS - Porque eu não sou pessimista, apenas observo a realidade. É só olhar o mundo e ver o que está acontecendo, ver o desespero de milhões de pessoas que vivem miseravelmente. Aparentemente existe o protótipo do mundo feliz, porém feliz para poucos. O mundo é um pesadelo e poderia não sê-lo, porque existem muitas formas de contornar essa situação.
AJ - Mas a sua literatura é considerada pessimista.
JS - Não gosto de discutir esse conceito, não leva a nada. Não existe o pessimismo puro, da mesma maneira que não existe o otimismo puro. O que posso dizer é que não sou pessimista, apenas tenho uma visão do mundo bastante pessimista.
AJ - Crer que a literatura pode ajudar a humanidade?
JS - A literatura pode muito pouco. Não vamos embarcar em ilusões, no otimismo. Ajudar a humanidade? Não sei se a humanidade quer ser ajudada. Mas a missão do escritor, se existe alguma, é não calar-se, que deveria ser a missão de todas as consciências.
AJ - A sua criação não é fácil. Como acredita que as pessoas mais simples intelectualmente podem captá-la?
JS - A idéia não é procurar escrever pensando que todo mundo vai compreender sua literatura. O problema não está em levar os livros para a gente mais simples; está em que cada um de nós faça da melhor maneira possível aquilo que sabemos. Seria um erro fazê-lo pior, podendo fazê-lo melhor. A criação de um autor deve estar ao alcance de todas as pessoas, para que elas procurem e possam entendê-la. O caminho é a cultura ao alcance de todos. Sei que há livros meus que muita gente não entende, e tenho que declarar, muito humildemente, que há livros que não entendo, que também não estão ao meu alcance.
AJ - Como o senhor definiria a novela, talvez o gênero literário que mais trabalhe?
JS - Faço novela porque não aprendi a escrever ensaios. Eu não tenho imaginação. A novela, como eu a vejo, mudou muito, não é mais como as magníficas novelas do passado que contavam histórias sobre a vida das pessoas. Vejo a novela não como um gênero literário, mas um espaço criativo onde devem estar o ensaio, o drama, a filosofia, a ciência. É preciso transformar a novela num depósito da sabedoria humana.
AJ - Mas este é um conceito antigo.
JS - Talvez, mas que teve a sua meta desviada. Nas minhas novelas, tenho a história que quero contar, limitada ao essencial. Logo, sem perceber, entro com uma reflexão ensaísta ou filosófica, deixando o narrador ou os personagens de lado por instantes. E o autor fala sem estar previsto inicialmente.
AJ - Esse autor que fala confunde-se com o narrador?
JS - Eu não acredito no narrador, ele não existe, é uma invenção. O que está no texto é um senhor que se chama autor e nada mais, muitas vezes fingindo que é o narrador.
AJ - Camilo José Cela declarou numa entrevista que, ao ganhar o Nobel, é preciso muita força e saúde para não esgotar-se completamente.
JS - É verdade. Fiquei muito cansado. Não fazia outra coisa senão viajar. Foram muitos congressos, entrevistas, lançamentos, apresentações, doutoramentos honoris causa. O próprio Cela já havia me avisado que o ano imediato ao prêmio é perdido. Mas não me queixo.
AJ - A cultura se move muito por modas. Quando pensamos que os brasileiros estão interessados na literatura portuguesa, como é o caso da sua obra e da de Lobo Antunes, não estaremos dando importância a algo passageiro?
JS - As modas não são negativas. Sem moda seguiríamos como antes. É bom que surja algo diferente, mesmo efêmero. Algo sempre permanece. Inclusive falando de autores que estão na moda. Se com a moda da literatura portuguesa, que você disse que existe no Brasil e eu não creio muito, passamos a vender um pouco mais, já é bastante interessante.
AJ - Saramago não é o seu verdadeiro sobrenome?
JS - Eu fui o primeiro Saramago da família, porque o empregado do registro civil fez uma pequena confusão. Sou um Souza. Saramago é uma planta que nos tempos da minha infância, e antes, as pessoas da minha aldeia, em épocas de crises, digamos, comiam saramagos. Gosto do meu sobrenome, não queria ser chamado de José de Souza.
AJ - Por que escreve dia após dia?
JS - Eu vivo desassossegado, escrevo para desassossegar. Não desejo abandonar-me a comodidade existencial. Mas o que procuro saber com a minha escrita, no fundo, é essa coisa tão simples e que não tem resposta: quem somos? Porém, quando esgotar o que tenho que dizer, terei a sensatez de não escrever mais.
Antonio Júnior
(de Lisboa)