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A MÁSCARA DE CRISTO

            Era a máscara de Cristo.
            Não sofredora, no Gólgota.
            Mas bela, altiva e majestosa face de Cristo em: <http://sunsite.org.uk/cgfa/angelico/p-angeli25.htm>
            Mendigo que morava na Praça Tiradentes, no Rio de Janeiro, entre prostitutas, michês, ladrões, travecos e policiais.
            Eu o assistia, todos os dias.
            Sempre ali estava, em qualquer canto.
            Às vezes via-o caminhando para algum lugar, do nada para nenhum lugar.
            Sem saber, sem olhar,  se movia. Flutuasse.
            Era belo, figura do Cristo de Fra Angelico.
            Quando andava um rastro fétido no ar. Mistura de sujeira, fezes, suor e urina ressecada.
            Impossível saber se era moreno como um palestino, ou se pintado de sujeira, cinza e fuligem sedimentada na pele escamosa.
            Cabelos barbas sujos, longos.
            Nos olhos escuros a profundidade e loucura místicas.
            Vestia calças sobrepostas, camisas de mangas muito compridas, e em farrapos, tinha pudor do corpo escondido.
            Eu o alimentava diariamente.
            Não aceitava dinheiro.
            Quando se lhe dava dinheiro, aquilo permanecia lá, sem valia, sem valor e serventia, o vento levava pelo chão.
            Bebia? Nunca pude saber.
            Quando lhe trazia comida, estendia ele ambas as trêmulas mãos, grunhia algo em desconhecida linguagem, talvez bênção, língua arcaica, aramaico.
            Mas de alguma forma me olhava com amizade.
            O que eu sempre desejei era sentar-me ali, com ele, conversar, partilhar de sua companhia.
            Mas nunca tive coragem, como em outra época fiz com menino de rua, que levei para casa. Agora os tempos eram outros. A Praça grande movimento, principalmente agora, cercada pela grade que a protege de nós, pedestres.
            E todos os dias, quando passava para almoçar na Cooperativa dos Vegetarianos da Rua Pedro I, dava eu uma volta para vê-lo, e para que me visse. Era um pacto, entre nós.
            Outras vezes voltara eu para ver se ele tinha comido bem.
            Na última vez que o vi estava transtornado.
            Era a máscara da morte, pálido.
            Deve ter sido agredido pela matilha de cães.
            As roupas em frangalhos, deixava aparecer o corpo ferido de estocadas.
            A cabeça e testa rasgada, unhada.
            Parecia mortalmente doente e se via que voltara apenas para a última ceia.
            Nada comeu.
            A marmita permaneceu no chão ao lado, onde a coloquei.
            Súbito um relâmpago quebrou o céu por cima de nós em grandes estilhaços como se rasgasse uma cortina de um ser gigantesco e o abrisse de par em par.
            Abri o guarda-chuva.
            As pessoas começaram a correr, aflitas, fugindo da chuva.
            Então Ele se levantou.
            Irradiava luz.
            E, levantado, começou a andar, lento.
            A chuva escorria por suas vestes.
            Andava devagar, muito devagar, sob a chuva.
            No meio da praça, voltou-se para mim e, pela primeira vez, sorriu, despedindo-se. Eu pude ver a ferida na palma de sua mão.
            Desapareceu na esquina.
            Chovia mansamente.