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OS SONHOS COMO PRINCÍPIO DAS ESPERANÇAS ÀS VEZES PERDIDAS

          Há uma conferência de Ernst Bloch, conhecida como “O Homem Como Possibilidade”, que se inicia assim: “ Senhoras e Senhores, vamos começar moderadamente. Mas também com vigor e ousadia. Vamos começar com os sonhos.” Desde que a li, pela primeira vez, na década de sessenta, este texto me persegue. Bloch (1885–1977), como se sabe, foi marxista alemão  que saiu para os Estados Unidos, depois de 1933, por causa do nazismo. Sua obra mais famosa é “O princípio da esperança” (3 volumes, publicada de 1952 a 1959).
          Na conferência citada diz ele que os sonhos não se dão só à noite, há sonhos diurnos, quando o eu não desaparece, mantém-se presente e sem censura. Nestes nossos desejos voam, povoam, sem hipocrisia, sem camuflagem. Sem medo. Nossos desejos dominam nossos sonhos diurnos: uma bela roupa, uma jóia, uma vitrine. A casa de nossos sonhos. O livro de nossos sonhos. No mundo dos sonhos, o custo de vida não é tão alto, nem nossos salários tão baixos. Não, nada precisamos comprar, pagar, no aberto mundos dos sonhos. Somos – todos – participantes dessa sociedade de consumo de sonhos.
          E pronto: parece que aí está, quase sem a gente perceber, o “princípio da esperança”, que guia nossas vidas. Parece, mas não é bem assim. O livro de Bloch é difícil e gigantesco (três volumes, em cerca de 1400 páginas na tradução inglesa!).
 Bloch mistura marxismo com a doutrina judaica de redenção, e faz da dicotomia aristotélica de potência e ato a base de uma certa teoria da história à caminho da progressiva emancipação redentora, ou seja, o caminho da esperança  de melhores dias, vida melhor, em melhores condições.
          Segundo Douglas Kellner, que encontrei na Internet, - (“ Ernst Bloch, Utopia and Ideology Critique”) -, o primeiro volume trata do nosso consumo dos sonhos diurnos: a moda, a propaganda, as viagens, os filmes e outros objetos culturais.
          O segundo volume versa sobre os sonhos de “um mundo melhor”, analisa as utopias políticas, as utopias tecnológicas, as utopias arquitetônicas, além dos ideais de paz e tranqüilidade.
          O terceiro volume aborda as imagens do desejo na moralidade, na música, na morte, na religião, na natureza e no ambiente, no bem.
          Todos três volumes estudam a questão cultural do “sonho de uma vida melhor”, que ele trata como mitos, formas de arte, política e religião. Enfim, a questão da “emancipação”
          Lembra Bloch que Lênin lastimou certa vez que o movimento havia perdido a capacidade de sonhar. Mostra a contradição entre o feijão e o sonho:  «Delicados coexistem os pensamentos, ásperas se chocam as coisas no espaço», escreveu. Lembra que estamos sempre cercados de conflitos, e que, frente aos sonhos, o mundo real é contrário e contraditório, e se acha carregado das tensões de ontem e anteontem. «O velho não quer passar. E o novo não quer chegar». Mas, «o que contrapomos ao mal, não deve ser uma loucura solitária». A realidade não é fixa, acabada, mas mutável. É possível enfrentá-la, modifica-la. As coisas estão fluindo. Ela foram feitas e por isso mesmo podem ser modificadas. Existe sempre a possibilidade de mudança. «Poder ser diferente significa poder transformar-se em outra coisa melhor».
         Ora, quem sonha são os poetas, principalmente românticos, que sonham «as ilusões perdidas»:
 

Minh’alma é triste como a rôla aflita
Que o bosque acorda desde o albor da aurora,
E em doce arrulo que o soluço imita
O morto esposo gemedora chora.
E, como a rôla que perdeu o esposo,
Minh’alma chora as ilusões perdidas,
E no seu livro de fanado gôzo
Relê as fôlhas que já foram lidas.
E como notas de chorosa endeixa
Seu pobre canto com a dor desmaia,
E seus gemidos são iguais à queixa
Que a vaga solta quando beija a praia.
Como a criança que banhada em prantos
Procura o brinco que levou-lhe o rio,
Minh’alma quer ressuscitar nos cantos
Um só dos lírios que murchou o estio.
Dizem que há gozos nas mundanas galas
Mas eu não sei em que o prazer consiste.
- Ou só no campo, ou no rumor das salas,
Não sei porque mas a minh’alma é triste!


         Como toda ilusão, a realidade já nasce «perdida», e os românticos lastimavam que, em verdade, não encontravam a materialidade de seus sonhos. Ou seja, a vida concreta (se se pode falar assim – e só em crônica se pode) não corresponde ao sonho abstrato, e aqui os gozos, os prazeres, os brincos (os brinquedos), os amores, no campo ou na cidade não correspondem ao idealizado pela imaginação.  Por isso, «a minha alma é triste».

          No poema de Casimiro de Abreu se pode ouvir, até mesmo, um OH! – esta exclamação lamentosa -  rola, bosque, acorda,  albor, aurora, soluço, morto, esposo, chora etc. – uma série de oooos, todos lamentosos acentos.
 Incompatibilizados com o mundo, não é sem razão que os românticos acabem morrendo tão cedo. Morrem de inanição espiritual, depressão. Sucumbem à glória do capitalismo da primeira revolução industrial.
         A poesia (mas nem sempre) pertence à categoria dos sonhos:

Conheces a região do laranjal florido?
Ardem, na escura fronde, em brasa os pomos de ouro;
No céu azul perpassa a brisa num gemido...
A murta nem se move e nem palpita o louro...
Não a conheces tu? Pois lá... bem longe, além,
Quisera ir-me contigo, ó meu querido bem!
(Diz Goethe, na belíssima tradução do mestre João Ribeiro.)
        Sim, esta é a região dos sonhos. Lá, bem longe, além. Lá é melhor. Para lá é que devemos ir, escapar, fugir. Lá está tudo o que é belo, perfeito. Lá está a felicidade. Não a conheces tu, leitor e leitora? Será que existe mesmo?
        Mas... não percamos as esperanças.