Neste mês de abril, mais precisamente no próximo dia 22,
vamos comemorar os 500 anos do "descobrimento" do Brasil.
Ninguém definiu melhor esse episódio do que Lamartine
Babo, quando, rimou Brasil, Cabral e Carnaval, definindo uma equação
que nenhum estudioso havia notado: o Brasil foi inventado por "seu" Cabral,
no dia 22 de abril, dois meses depois do Carnaval!
Enquanto os intelectuais pátrios discutiam os males da
mestiçagem, Lamartine Babo singelamente conectava Brasil e Carnaval.
Para ele, a palavra-chave para entender a "história do Brasil" não
estaria no verbo "ser" (o Brasil é isso ou aquilo, é assim
ou assado), mas num processo de construção coletivo:
no Carnaval que inventa nossa identidade sendo, por sua vez,
reinventado por nós.
Falo destas coisas porque observo com pesar que as comemorações
do descobrimento estão cercadas de melancolia. A nossa incrível
capacidade de confundir crítica com flagelação tem
usado essa oportunidade para realizar uma espécie de antidescobrimento
do Brasil. Ou seja: no justo momento de comemorar o aniversário
do País, usa-se o evento para descobrir os índios que, além
de donos da terra, tinham também sua visão particular dos
portugueses. Isto posto, quem "descobriu" quem?
Nada tenho contra essa tese. Mas vale estimar que a comemoração
da "descoberta do Brasil" não é proposta como uma verdade
indiscutível. É, entretanto, um ritual derivado de um "mito
fundacional". Uma história que - como todo conto - tem uma perspectiva
e um ponto de vista. No caso, como não poderia deixar de ser, um
inegável viés luso-brasileiro.
Todos os países tem "mitos fundacionais". Os americanos falam
de uma nação feita por "pais fundadores", os representantes
das 13 "colônias originais" que, congregados em federação,
escreveram o documento fundador dos Estados Unidos, a sua Constituição.
Os mexicanos falam de uma "conquista", salientando um traço marcante
de sua colonização pelos espanhóis imbuídos
de missão civilizatória. Em ambos os casos, esqueceram-se
os índios e os negros, ambos dotados de visões particulares
desses mesmos eventos.
Com quem ficar? Como encontrar a trilha nesta floresta de mitos e clamores
civilizatórios, se não há bússolas ou juízes
da história e das mitologias?
Só há um caminho. O que reconhece a "descoberta do Brasil"
como um evento inclusivo. Não há razão para esquecer
que toda descoberta implica em mutualidade e reciprocidade. É triste,
e ao mesmo tempo revelador, que nenhum dos vários comitês
destinados a organizar e honrar esse evento original de nossa história
tenha enfatizado e apresentado esse argumento definitivo: o fato de que
nas três Americas, somente o Brasil tenha um mito de "descoberta"
(que inclui tanto a terra quanto os nativos), quando todos os outros mitos
fundacionais "americanos" sejam constituídos por narrativas baseadas
na exclusão e na dominação dos nativos e da natureza.
Além disso, é preciso também ter a coragem para
admitir que toda sociedade tem o direito de comemorar seus mitos. Sobretudo
quando esses mitos não clamam superioridade racial ou promovem o
ódio étnico. Se todas as tradições contêm
sua quota de arbitrariedade, porque não aceitar as que fazem parte
da nossa mitologia fundacional? Uma mitologia, reitero, singularmente baseada
na inclusão e na mutualidade. Na idéia de descoberta que
permite dialogar e descobrir o ponto de vista do outro. Se os grupos radicais
têm todo o direito de desmistificar o mito cabralino da descoberta
do Brasil, nós, brasileiros, temos iguamente o direito de acreditar
e honrar esse mito que, afinal de contas, dá origem a nossa história
como coletividade.
Aceitos esses argumentos, por que então não deflagrar
um debate coletivo pondo em foco a idéia de "descoberta", de "descobrimento"
e de "descobrir", atando os que aqui chegaram com os que aqui residiam,
uns e outros surpresos pela visão e pelo inusitado encontro com
uma outra humanidade?
Seria ótimo, se não fosse, como sempre, um tanto
tarde para se descobrir o óbvio.
É incrível nossa capacidade de confundir crítica
com fragelação.