A AMÉRICA DE VESPUCCI E O BRASIL DE PEDR’ÁLVARES --- POR EDUARDO BUENO

    Quem descobriu o Brasil?
    Errou quem respondeu Pedro Álvares Cabral, a 22 de abril de 1500. Quem descobriu o Brasil foi o capitão espanhol Vicente Yañez Pinzón (ex-comandante da Niña), a 26 de janeiro de 1500, tendo chegado à ponta de Mucuripe, dez quilômetros ao sul da capital do Ceará (sem qualquer relação com o Monte Pascoal ou com Porto Seguro).
    E por quê batizaram o Novo Continente com o nome de “América” — se ele havia sido descoberto, em 1492, por Cristóvão Colombo e não por Américo Vespúcio? Simplesmente porque o astucioso parente de Simonetta Vespúcio (a mesma que serviu de modelo para “O Nascimento de Vênus”, de Botticelli), Américo, participou de algumas das primeiras incursões ao Mundus Novus (ao lado dos navegadores Alonso de Hojeda e Gonçalo Coelho), tendo redigido cartas a Lorenzo de Médici --- que correram a Europa e que, impulsionadas pelas técnicas de impressão de um certo Johann Gutenberg, chegaram ao revisor alemão da obra do geógrafo Ptolomeu, Martin Waldesemüller, o qual decretou: “Agora que uma outra parte do mundo, a quarta, foi descoberta por Americum Vesputium, de nada sei que nos possa impedir de denominá-la, de direito, Amerigem, ou América, isto é, a terra de Americus, em honra de seu descobridor, um homem sagaz, já que tanto a Ásia como a Europa receberam nomes de mulheres.”
    E você sabia que alguns dos nossos principais acidentes geográficos litorâneos foram nomeados de acordo com o calendário litúrgico? Pois é verdade. Assim foi para o cabo de Santo Agostinho (avistado a 28 de agosto de 1501), bem como para o rio São Francisco (de 4 de outubro), para a baía de Todos os Santos (de 1º de novembro), para um Rio que despontava em Janeiro (na aurora de 1502) e para uma esplendorosa enseada que, no dia 6 do mesmo mês, ganhou o nome de Angra, dos Reis.
    Essas e outras Histórias compõem os dois providenciais volumes lançados pela Editora Objetiva, na coleção Terra Brasilis, e que levam a assinatura de Eduardo Bueno --- jornalista por profissão, historiador par excellence. Volumes que resgatam o gosto pelas nossas origens e pela nossa identidade tão em baixa hoje em dia. São eles: “A Viagem do Descobrimento” e “Náufragos, Traficantes e Degredados”.
    O primeiro narra desde as peripécias de Bartolomeu Dias, no costeamento da África, na superação do Cabo das Tormentas (posterior Cabo da Boa Esperança); remetendo à infância da colônia romana de Portus Calle, à formação da Península Ibérica; passando pela mitológica Escola de Sagres, de D. Henrique, aperfeiçoadora do astrolábio e da balestrilha; tempo de Barcha, de Caravela (diminutivo de “caravo”, lagosta) e de Nau (nave, em latim); desembocando em D. João II, na chegada à Índia, por Vasco da Gama, na “Volta ao Mar” — e, finalmente, na viagem de Pedro Álvares Cabral, mais um “filho de algo”, um militar, do que um navegador propriamente dito.
    O segundo volume pretende preencher a lacuna de 30 anos (de 1500 a 1530), em que o Brasil ficou “abandonado” por Portugal (que não via muito futuro na “Terra dos Papagaios”). Um período fundamental na etapa de formação do país, de sua etnia e de seu papel no contexto comercial da época; mas um período solenemente ignorado pela Historiografia dita Oficial --- que num rasgo de simplificação didática, pula de Cabral direto para Martim Afonso de Souza e para as Capitanias Hereditárias.
    Bueno, pelo contrário, aborda essas incipientes décadas com cuidado e abundância de detalhes, recontando desde as primeiras expedições do genôves Cristóvão Colombo, dos espanhóis Alonso de Hojeda e Diego de Lepe, e do fiorentino Américo Vespucci (traçando o perfil de cada um e listando seu feitos, defeitos e glórias) até João Dias de Solis e o encontro com o tesouro do Império Inca, até a superação do estreito por Fernando de Magalhães (que batizou o Pacífico); fechando com as proezas do Bacharel da Cananéia, de Caramuru e de João Ramalho — nossos brasilianistas inaugurais.
    Louvável também, em ambos os livros, a ênfase dada ao relacionamento entre as tribos que na América do Sul habitavam (Potiguar, Tabajara, Tupiniquim, Tupinambá, Carijós, Goitacá, Charrua, Incas) e os primeiros exploradores/colonizadores. Preservando os registros memoráveis dos encontros entre europeus e aqueles homens “pardos, sem nenhuma coisa que lhes cobrisse suas vergonhas”. Homens sem “fé, lei ou rei”, sem “nenhuma idolatria, crença ou adoração”, homens que não reconheceram em Cabral um chefe “pois disso não entendem nem tomam conhecimento”, conforme escreveu nosso primeiro estilista, Pero Vaz de Caminha.
    Guardando-se, inclusive, as descrições dos eventos antropofágicos, como a de Américo Vespúcio, presente em uma de suas Lettere: as nativas “o apalpavam e o examinavam com grande curiosidade... Então as outras mulheres imediatamente o arrastaram pelos pés para o monte, ao mesmo tempo em que os homens, que estavam escondidos, se precipitavam para a praia armados de arcos, crivando-nos de setas, pondo em tal confusão a nossa gente, que ninguém acertava lançar mão das armas, devido às flechas que choviam sobre os barcos. Disparamos quatro tiros de bombarda, que não acertaram, mas cujo estrondo os fez fugir para o monte, onde já estavam as mulheres despedaçando o cristão e, enquanto o assavam numa grande fogueira, mostravam-nos seus membros decepados, devorando-os, enquanto os homens faziam sinais, dando a entender que tinham morto e devorado os outros dois cristãos.”
    Tudo isso finamente ilustrado com gravuras, mapas, quadros, bibliografias e notas assaz esclarecedores.
    Afinal o Brasil merece toda essa atenção para com a sua Memória. Cabe, agora, aos brasileiros tomar contato com esse admirável trabalho.
    Voluntários?


 

    BRASIL: 500 ANOS DE PARCO AMADURECIMENTO INTELECTUAL

    No Brasil, vivemos todos ilhados. Alguns entregues a uma alienação sem culpa, às vezes tão impregnada de "razões do coração" que a esperança de clareza de pensamento fica relegada apenas à geração seguinte. Se ficar. Outros vivem a ilusão de enxergar mais longe e, na sua ignorância (ou sapiência) de quem conhece quase todos os males nacionais, apontam caminhos para uma possível salvação ou, então, censuram movimentos que consideram perniciosos ao Brasil.
   Estamos fartos de doutrinários megalomaníacos, no entanto, é o que mais nos sobra. Cada qual cacarejando nos confins de seu galinheiro, no sonho de agremiar toda a massa, numa revolução contra uma suposta comunidade de predadores. Como inteligência, continuamos tão reprováveis quanto os aventureiros, os usurpadores, os bárbaros, ou como quiserem chamar, que aqui pisaram, buscando glória, fortuna e consagração individual --- às custas dos recursos que brotam a terra, das mazelas e do atraso de outros povos, do esforço e do mérito alheio (que se não podemos alcançar, sugamos até à míngua).
    É de se envergonhar que, depois de cinco séculos, ainda busquemos
consolo no colo da mesma platéia nativa e cativa, ao invés de enfrentarmos os desafios intelectuais que nos cabem de fato. É de se envergonhar que, falando para uma nação de semi-analfabetos, ainda consigamos nos gabar de convencer alguém de umas meias-verdades, ou do sofisma que é a última moda.É de se envergonhar que, mamando nas tetas do corpus ou do ideário alheio, finjamos compor uma obra de sistema e de conjunto que não sobreviveria (e não sobrevive) a um exame minimamente rigoroso, fora do Brasil. E é de se envergonhar que, incapazes de elaborar um discurso próprio ou de aprumar um livro de umas quantas páginas, partamos para a condenação ou para o prejuízo daqueles que, com sucesso, lograram tal.
    No fim, cansados de tantas lutas e de tanto grasnar contra o que neste país nunca muda, entregamo-nos aos mesmos vícios e às mesmas práticas que, do alto do púlpito, costumamos execrar. Assim, quem hoje prega a urgente e imprescindível leitura dos clássicos da nossa língua e literatura, amanhã entrega-se aos dramalhões mais reles e torpes (para não ficar "sem assunto" nas rodas e nos círculos de amizade e trabalho). Assim, quem hoje ataca o nu e o sexo, sugerido ou explicitado, encoberto ou praticado, por adultos e crianças, amanhã vai exaltar "de boca cheia" a preferência nacional pelas proeminentes nádegas (ou discutir com minúcia ginecológica os atributos físicos da mais recente modelo). Assim, quem hoje distribui saraivadas contra a incompetência, a corrupção e o favoritismo, amanhã quando tiver nas mãos um projeto, um departamento ou uma divisão para tocar, vai apadrinhar compadres e ideólogos de mesa de bar, ao invés de cercar-se dos comprovadamente melhores e mais capacitados. Assim também, quem hoje combate mui ferozmente o reino da futilidade, da falsidade e das aparências, atacando a superficialidade da mídia e o poder da imagem, amanhã entregar-se-á de bom grado a uma bela sessão de fotos, abrindo as portas de sua casa e de sua intimidade para o veículo mais inescrupuloso e influente que se puder encontrar.
    Se não podemos resolver questões tão domésticas de identidade e de coerência interna, o que dizer de nossa representatividade ante as demais civilizações? É ela inexistente, senão ridícula. Apenas para ficar em manifestações contemporâneas de nossa criação: na Pintura e na Escultura, paramos nos modernos. O abstracionismo, que não repercutiu senão em círculos de grã-finagem (ou na cabeça dos nossos ininteligíveis "críticos de arte"), impôs sua ditadura de hermetismo e incompreensão, no limite do jocoso e do estrambótico. O Brasil, que mal teve chance de amadurecer sua inclinação figurativista nata, logo partiu para a fragmentação e para os "ismos" das cansativamente retomadas "vanguardas". Na Literatura, paramos no Regionalismo de sessenta (ou mais) anos atrás. O romance urbano, embora desenvolvido à perfeição na última fase de Machado, nunca vingou: ou cedeu à formulação fácil e psicologicamente rasa dos ditos policiais; ou embrenhou-se em veredas de perigosa invenção, oscilando entre o ornamental e o intragável (rendendo teses e mais teses de mestrado e doutorado). Nossos poetas, confinados à irremovível barreira da língua, jazem esquecidos na nossa notória falta de memória. Na Música, desperdiçamos pelo menos três visionários nesse século que passa: Villalobos, Caymmi e Jobim. Homens para fundar escolas e tradições — desafortunadamente atropelados: ou por seguidores pouco talentosos; ou por apoio e reconhecimento raquíticos; ou por agentes equivocados (e seus interesses puramente pecuniários).
    Nossas academias são pura ficção. Mal falando Português, tropeçando nas quatro operações básicas da Aritmética, ingressamos à Universidade com a pretensão de apreender as lições de Newton, Eisntein, Darwin, Freud, Hegel, Descartes, Maquiavel e Platão, monumentos e revolucionários do pensar universal — milagrosamente incorporados ao nosso répertoire depois de quatro ou cinco anos de mal disfarçadas paródia, síntese e macaqueação. Nossos institutos, grêmios e associações, em geral, orbitam em torno do próprio umbigo, alimentando as vaidades e a maledicência de seus membros-fundadores, perdendo-se no provincianismo e nos ecos de falsos debates.
    Nossa espinha dorsal está corrompida e podre.
    Com a globalização da Economia, da Política e, mais adiante, do Direito, da Educação e do Conhecimento, porém, nossa "elite", improdutiva e incompetente, tende a ser destituída de seus títulos e cargos, progressivamente. Modelos de organização e de eficiência, que hoje põem abaixo os privilégios e as benesses dos nossos clássicos "barnabés" (públicos e privados), amanhã tendem a se espraiar, chacoalhando os alicerces de toda a vida nacional.
    É apenas questão de tempo. É esse o passo do Mundo.
    Atolados no lodo e na confusão de sempre, não conseguiremos, mais uma vez, nos salvar. Salvar-nos-ão eles.
    Quem sobreviver verá.


J. D. Borges