CIDADES BRASILEIRAS
 
EVOCAÇÃO DE OURO PRETO

        A Rodrigo Melo Franco de Andrade

Mil novecentos e quinze.
Adolescência. Ouro Preto.
No silêncio do meu quarto,
pobre quarto de pensão,
vou contando, em prosa e verso,
mais em verso do que em prosa,
tudo quanto aqui me ocorre,
sob os céus de Vila Rica,
ontem rica de ouro e pompas,
hoje só de tradição.
Estudante, pouco estudo:
sou notívago e vadio.
Amo o luar das madrugadas
nestas serras, nestes cerros;
amo o frio, o vento, a névoa
o abandono, a solidão;
amo as noites de seresta,
a boêmia, os trovadores;
amo a flauta, que ouço ao longe,
a guitarra e o violão.
 - Só não amo a Geometria
e outras coisas de somenos,
que me levam, diariamente,
ao Liceu do Padre João.

 Nem tudo, porém, desamo
no famoso educandário:
amo as letras, amo as artes,
(minas de ouro destas Minas);
amo a história do meu povo,
deste povo montanhês;
amo as lendas e legendas
dos heróis e dos artistas,
cujos feitos, cujas glórias
eu descanto no meu canto,
desvelando a chama límpida,
que os alumbra e me deslumbra,
essa chama, que se chama
luz divina, e simboliza
nos artistas - a pureza,
nos heróis - a intrepidez.
Conta o mestre: - O Aleijadinho,
gênio anônimo e obscuro,
projetando e construindo
em nossa Capitania,
pôs em tudo que riscara
tranparência e lucidez.
E, senhor do seu ofício,
recriou as artes plásticas,
deu seu nome a um novo ciclo,
surpreendendo o mundo inteiro,
que ainda hoje se extasia
ante as obras que ele fez.

E eu, menino: - Que beleza!
Fale-nos dele outra vez.

Mas passando ao Tiradentes,
diz o mestre: - O Protomártir
gravou com letras de sangue
na memória dos mineiros
a palavra Liberdade
(que era o símbolo, a divisa
da Santa Conjuração),
depois de supliciado
no patíbulo infamante,
onde morrera, clamando
pela nossa independência,
pela nossa redenção.
- Palavra por que lutavam
poetas e sonhadores,
e que logo os Conselheiros
da Rainha, na Metrópole,
impediram figurasse
nos papéis da Imprensa Régia,
destinados à Colônia:
nos compêndios, nos folhetos,
em qualquer publicação
até mesmo nas cartilhas,
nas cartilhas das crianças,
como se estas, já de há muito
desde muito, a não trouxessem
germinada e florescida
no fundo do coração.

E eu, menino: - Desalmados!
Por que tanta judiação?

Era assim na adolescência,
assim era nos meus tempos,
nos meus tempos de estudante,
de estudante ouropretano.
Hoje, entretanto, já velho,
e longe daqueles cerros,
ao lembrar-me de Ouro Preto,
sinto amargura e tristeza.
(quem de vós não sentirá?).
O aroma que se respira
no santuário de Minas
faz brotar, inesperado,
na alma sofrida da gente,
um sentimento de culpa,
que mais parece remorso,
pela amargura que encerra,
pela tristeza que dá.

Em meio a tantas ruínas,

o sonho do Tiradentes
é uma rosa que fenece
na desmemória dos homens.
E ouço a voz do Protomártir,
reboando nas montanhas:
- Não deixes morrer a rosa
que, nascida do meu sangue,
com meu sangue semeei.
Milhões de seres humanos,
privados da Liberdade,
ainda esperam inutilmente,
pela rosa que vos dei.

Evocando Vila Rica,
vendo-a morta, com seus mortos,
e mortos seus próprios sonhos,
sinto amargura e tristeza.
Ah que tristeza me dá!
Por isso mesmo não volto
àqueles cerros distantes
ninho de heróis e poetas,
onde eu vivera e sonhara.
Não volto mais à pousada
de Cláudio Manuel da Costa,
de Eliodora e de Alvarenga,
de Marília e de Gonzaga.
- Nunca mais eu volto lá

                                        Enrique de Resende