CIDADES BRASILEIRAS
POESIA DE OURO PRETO
Oh ciudad de los gitanos!
Federico Garcia Lorca
Ó cidade de Ouro Preto
Boa da gente morar!
Numa casa com mirantes
Entre malvas e gerânios,
Ter os olhos de Marília
Para cismar e cismar.

Numa casa com mirantes
Pintada de azul-anil
Sobre a rua de escadinhas
Que é um leque em poeira, de sândalo,
Passar na janela o dia
Vendo a vida que não anda.

E de noite vendo a lua
Como uma camélia opaca,
Flor sem perfume, de jaspe,
Abrir o baú de folha
Que é lembrança de família,
Baú onde criam mofo
Cartas velhas e retrato
De um ingrato namorado.

Numa casa com mirantes
Lá da alcova,  atento o ouvido
Escutando as serenatas
De clarineta e violão,
Evocar tempos perdidos
Quando a Ponte dos Suspiros
 –  hoje povoada de sapos –
era a  ponte dos encontros
dos noivos que não casaram.

Também ouvir a desoras
(risca fogo, bate casco
nas calçadas, a galope,
sem destino, sem descanso)
aquele cavalo bravo
que deu martírio e deu morte
crua  a Felipe dos Santos.

Depois, de manhã bem cedo
Ir à igreja das Mercês,
Das Mercês e dos Perdões,
Ficar ajoelhada no adro
Na contemplação feliz
Das volutas e dos frisos
E, embora sem Ter rezado,
Voltar para casa leve,
Coração de passarinho
Navegando com delícia
Os rios de ar da montanha.

Com o lusco-fusco e o sereno
Pôr agasalho de lã,
Voltar o mesmo caminho
Para assistir à novena,
Ver de novo hoje como ontem
A escura Casa dos Contos
Onde mora a alma penada
De Cláudio Manoel, coitado.

Pisar com carinho as ruas
Que o Aleijadinho pisou
Marcando-as com sua força,
Como se essas ruas fossem
Lotes de pedra-sabão.

E quando houver procissão,
Chegar perto de São Jorge
Para ver a carantonha
Do alferes que se presume.
E enquanto das casas nobres
Vem   almíscar de alfazema
Por entre colchas de seda
E franjas pelas sacadas,
Seguir de cabeça baixa
Na mão uma vela acesa.

Ó poesia de Ouro Preto
Cofre forte com segredo!
Poder olhar de soslaio,
Meio escondida no mato
Com verdes nódoas de musgo,
A casa em que se reuniam
Em volta da mesa grande
Os homens da capa preta.
Numa parede – há quem diga –
Existe uma cruz de sangue
Com que jurou Tiradentes,
Uma cruz que se ilumina
No dia vinte e um de abril.

Ó poesia de Ouro Preto!
Em cada beco ver sombras
Que já desapareceram.
Em cada sino ouvir sons,
Badaladas de outros tempos.
Em cada arranco do solo,
Batida de pedra e cal
Ver a eternidade em paz.

Ó cidade de Ouro Preto
Boa da gente morar!
E esperar a hora da morte
Sem nenhum medo nem pena
— quando nada mais espera.

                                        Henriqueta Lisboa