GLAUCOMATOPÉIA [#11]

[1] Quando mostrei ao amigo Bráulio Tavares os primeiros resultados da aventura xibunguista com que reincursionei no glosismo, o tarimbado colega acudiu imediatamente com a lembrança da lendária cega de Cabaceiras, cuja figura tem muito a ver (ou não ver) com minha postura masoquista. Segundo Bráulio, trata-se de "um personagem folclórico lá da Paraíba, a famosa Cega de Cabaceiras. Cabaceiras é uma cidade na região do Cariri, uma das cidades mais pobres e mais secas da Paraíba. Foi lá que Guel Arraes filmou recentemente as locações do AUTO DA COMPADECIDA. Pois reza a lenda que em Cabaceiras tinha uma puta que era cega, e além de cega, masoquista. Os fregueses iam lá no cabaré, comiam a ceguinha de todos os jeitos, cobriam ela de porrada, tomavam o dinheiro dela, e iam embora. As amigas entravam no quarto e a ceguinha estava jogada no chão, toda coberta de hematomas. Elas se preocupavam: 'Ceguinha! Assim você morre!' E ela murmurava, olhos entrecerrados, feliz: 'Eu quero é me lascar...' Surgiu daí a expressão que se diz quando as coisas vão mal mas a gente resolve dar uma relaxada: 'Ora, foda-se! Eu tou é como a cega de Cabaceiras, eu quero é me lascar!' A expressão tem função sintático-ideológica análoga à de 'desgraça pouca é bobagem'."

[2] Bráulio pôs sem dúvida o dedo na ferida, juntando a fome com  avontade de comer, ou por outra, de ser comida: além de cega, a coitada é puta e masoca. Dois outros agravantes, porém, tornam meu caso mais pitoresco: o não ser mulher e o ser poeta letrado. Ao varão não se desculpa nivelar-se à puta, muito menos glosar seu próprio aviltamento com a desfaçatez de quem faz do sambenito gala. Motes que corroborem a desventura duma cega prostituída é o que não falta. Este, por exemplo, foi assim glosado pelo mestre dos "bordelistas" potiguares, Moysés Sesyom (1883-1932):

PUDE ILUDIR UMA CEGA:
DEI-LHE UMA FODA NO CU!

Saindo de uma bodega
De meio lastro queimado,
Com muito jeito e agrado,
Pude iludir uma cega.
Rolando na beldroega,
Fazendo vez de muçu,
Pra furnicar me pus nu.
Faz tempo, mas me recordo:
Virei a cega de bordo,
Dei-lhe uma foda no cu!

[3] Minha xibunguista voz poética não se limita a trocar de lugar com a enrabada, mas ao ridículo da macheza ultrajada soma um grau de crueldade bem maior que o "agrado" com que Sesyom seduz sua vítima. Eis a versão mattosiana:
De jeito e sem dó me pega
Um marmanjo, que me enraba
E depois me menoscaba:
"Pude iludir uma cega!"
E o coitado aqui lhe entrega
A boca ao chouriço cru!
Ele ri: "Chupa, chuchu!"
Sai, então, e a toda gente
Me aponta e exclama, contente:
"Dei-lhe uma foda no cu!" [8.50]
[4] Era de se esperar, portanto, que, ao desentranhar da cantoria aderaldiana novos motes para me chafurdar na lama da cegueira tripudiada, eu reaproveitasse os insultos de Zé Pretinho dirigidos ao cego, como neste momento em que o negro ameaça Aderaldo, animalizando-o:
Esse cego bruto, hoje,
Apanha, que fica roxo!
Cara de pão de cruzado,
Testa de carneiro mocho!
Cego, tu és o bichinho,
Que comendo vira o cocho!
[5] Que faz minha voz poética? Pega a carapuça e tira o seguinte mote, respondendo com a quadradécima:
CEGO, TU ÉS O BICHINHO
QUE COMENDO VIRA O COCHO!

Dando um sorriso escarninho,
O marmanjo que vê bem
Me interpela com desdém:
"Cego, tu és o bichinho!"
Porém eu nem me aporrinho:
Obedeço e aturo o arrocho;
Lambo a bota e deixo roxo
Este linguão de sabujo!
Sei que o cego é um porco sujo
Que, comendo, vira o cocho... [8.62]
 

GLAUCO MATTOSO
Poeta, letrista, ficcionista e humorista. Seus poemas, livros e canções podem ser visitados nos sítios oficiais:
http://sites.uol.com.br/glaucomattoso
http://sites.uol.com.br/formattoso