GLAUCOMATOPÉIA [#16]

[1] Sobre as curras orais que sofri na idade escolar já dei exaustivos detalhes, tanto em soneto quanto em glosa, e muitos exemplos apareceram nesta mesma coluna. Um dos sonetos mais próximos da veracidade foi este:

SONETO 355 PRIMÁRIO

Retorno eternamente àquela escola
na qual pagava todo dia o pato
por ser estudioso. Com mau trato
vingavam-se os colegas do boiola.

Faziam-me chupar suja a pistola.
Me olhavam rastejar em meio ao mato.
Pezinho de dedão mais curto, e chato,
cobria minha boca com a sola.

Lambi seus tênis podres, encardidos.
Bebi seu mijo quente, amarelinho.
Seu riso ainda está nos meus ouvidos.

Hoje não bebo mijo, bebo vinho.
Não vejo cores: sonho com bandidos.
Da rosa, só o perfume: nem o espinho.

[2] A figura do agressor mirim, que, se não liderava, era o mascote da turma que costumava me "seqüestrar" para "zoar", é hoje um rosto anônimo, pois foi só seu apelido de Tampinha que restou na memória. Como se ele fosse um Cinderelo às avessas, persegui-o em sonho e em punheta pelo resto da vida, enquanto me apaixonava por pés mais amigáveis e palpáveis. Quando, ao desbravar a poesia, travei contato com aquele que seria um de meus referenciais, muito me impressionou o detalhe de que Bocage se retratara como bem-dotado... de pés! Recentemente, ao servir-me de seus versos como motes, associei sua figura à do guri que me abusara. Eis o famoso soneto donde tirei o dístico crítico:
AUTO-RETRATO

Magro, de olhos azuis, carão moreno,
Bem servido de pés, meão na altura,
Triste de facha, o mesmo de figura,
Nariz alto no meio, e não pequeno.

Incapaz de assistir num só terreno,
Mais propenso ao furor do que à ternura,
Bebendo em níveas mãos por taça escura
De zelos infernais letal veneno.

Devoto incensador de mil deidades,
(Digo de moças mil) num só momento
Inimigo de hipócritas, e frades.

Eis Bocage, em quem luz algum talento:
Saíram dele mesmo estas verdades
Num dia, em que se achou cagando ao vento.

[3] E eis como ficou a glosa em que fundi dois ídolos; se os olhos azuis de Bocage talvez não combinassem com o carão mulato do Tampinha, digamos que de modo poético sempre me foram malevolamente azuis, pois o que importa são os pés do moleque, que, por se acharem na posição ofensiva, pareciam-me ainda maiores que os meus, embora não o fossem:
MAGRO, DE OLHOS AZUIS, CARÃO MORENO,
BEM SERVIDO DE PÉS, MEÃO NA ALTURA... [8.86]

Toda noite, ao gozar, no sonho enceno
Variantes do abuso que, em menino,
Suportei dum guri que assim defino:
Magro, de olhos azuis, carão moreno...
Que eu me lembre, seu pau era pequeno,
Mas o gosto do mijo inda perdura,
E seu riso, curtindo a travessura,
Continua agredindo meu ouvido...
Outra coisa lembrei, por ter lambido:
Bem servido de pés, meão na altura...

GLAUCO MATTOSO
Poeta, letrista, ficcionista e humorista. Seus poemas, livros e canções podem ser visitados nos sítios oficiais:
http://sites.uol.com.br/glaucomattoso
http://sites.uol.com.br/formattoso