GLAUCOMATOPÉIA [#25]

[1] Muito já me lamuriei, nesta coluna, potencializando um pouco da revolta de todos os cegos quando precisam sair à rua e são alvo do escárnio de adultos e crianças, mais destas que daqueles -- o que só significa que as crianças são menos dissimuladas. Seguem dois sonetos em que me ponho no lugar que, segundo os mais sarcásticos, me caberia — um de 1999, bem verídico, e um de agora, mais genérico:

SONETO 264 CORRIQUEIRO

Andando de bengala na calçada,
o cego passa em frente duma escola
na hora em que o inquieto rapazola
tropeça-lhe na vara e esta é largada.

O jovem cavalão se desagrada:
na vara pisa, e o cego, como esmola,
que trate de abaixar-se onde está a sola,
enquanto outros moleques dão risada.

O cego apalpa o tênis do estudante.
Só falta pôr a boca sobre o couro.
Ofega e sente o cheiro do pisante.

O peso do vexame e do desdouro
lhe passa pela mente nesse instante:
Já velho, tem seu dia de calouro...
 

SONETO 637 INVECTIVADO

O cego tomba e a molecada berra,
sarrista: "Aí, cegão! Beija a calçada!"
O cego tromba e a sádica moçada
caçoa: "Aí, ceguinho! Olé! Se ferra!"

O cego rala os braços pela terra
e escuta: "Aí, ceguinho! Varre a estrada!"
O cego entra na pública privada
ouvindo: "Ei, cego! Senta, senão erra!"

O cego sai de casa com bengala
e volta de muleta, acidentado.
E a turma: "E aí? Que foi? Caiu na vala?"

O cego chega em casa e, injuriado,
esboça um desabafo, mas se cala
chupando rola, a ouvir: "Aí, viado!"

[2] Bocage, que quando menino certamente tirou sarro de muito cego, depois de crescido tratava mais de reparar no mulherio. Algumas damas nem esperavam ser notadas: chamavam-lhe ostensivamente a atenção, como neste irresistível soneto, típico do desregramento bocagiano:
[SONETO DA PUTA ASSOMBROSA]

Pela rua da Rosa eu caminhava
Eram sete da noite, e a porra tesa;
Eis puta, que indicava assaz pobreza,
Co'um lencinho à janela me acenava.

Quais conselhos? A porra fumegava;
"Hei de seguir a lei da natureza!"
Assim dizia e efeituou-se a empresa;
Prepúcio para trás a porta entrava.

Sem que saúde a moça prazenteira
Se arrima com furor não visto à crica,
E a bela a mole-mole o cu peneira.

Ninguém me gabe o rebolar d'Anica;
Esta puta em foder excede à Freira,
Excede o pensamento, assombra a pica!

[3] Dos dois versos iniciais tirei o mote agalopado em que martelei a glosa batendo na mesma tecla do cego escarnecido. Eis o resultado:
PELA RUA DA ROSA EU CAMINHAVA;
ERAM SETE DA NOITE, E A PORRA TESA;

A cegueira meus passos quase trava:
Receando cair nalguma vala,
Devagar, com auxílio da bengala,
Pela Rua da Rosa eu caminhava.
De repente, ouço a voz altiva e brava:
"Onde pensa que vai nessa moleza?"
Viro então dos pivetes fácil presa:
De joelhos, de rastros ou de quatro,
Faço o bobo e, ao ar livre do teatro,
Eram sete da noite, e a porra tesa... [8.92]

GLAUCO MATTOSO
Poeta, letrista, ficcionista e humorista. Seus poemas, livros e canções podem ser visitados nos sítios oficiais:
http://sites.uol.com.br/glaucomattoso
http://sites.uol.com.br/formattoso