GLAUCOMATOPÉIA [#35]

[1] Dizem que a voracidade fiscal dos governos sobre o contribuinte nunca foi tão feroz como agora. Que a carga tributária é cada vez mais escorchante a gente sente no bolso e no dia-a-dia, mas a verdade é que a taxação sempre foi, ao longo da história, uma forma de opressão mais eficaz e menos efêmera que as guerras, as revoluções ou as colonizações por mera ocupação territorial. Tendo em mente essas "derramas" que raramente provocam inconfidências, fiz o seguinte soneto:

SONETO 312 TRIBUTÁRIO

Em Roma se pagava pra cagar,
mas hoje a taxação tem melhor nível.
O imposto sobre a merda é dedutível
do grosso que teremos de pagar.

Não ande em contramão, vá devagar.
As multas são pesadas, coisa horrível!
Já não se trata mais de "causa cível":
"tributaristas" temos que tragar!

O Harrison já disse que a receita
lhe deixa um só, retendo dezenove.
Tá achando sua parcela muito estreita?

A origem da sua grana então comprove,
senão a mão em tudo ela lhe deita!
Só falta tributarem quando chove!

[2] A alusão à canção "Taxman" dos Beatles remete a outro tipo de cantoria, a dos glosadores, bem menos polidos que o cavalheiresco George Harrison. O paraibano Felício Vaz Guedes, por exemplo, devolveu assim glosado o mote abaixo:
DAQUI A POUCO NÃO TENHO
MERDA NO CU PRA CAGAR!

A minha palavra empenho
Sem qualquer contradição:
Dinheiro pra comprar pão
Daqui a pouco não tenho.
Observando eu venho
Aonde se vai parar:
Se outro aumento chegar,
De gasolina ou de gás,
Aí não terei jamais
Merda no cu pra cagar.

[3] Na minha mão este mote não poderia ser resolvido apenas pelo lado do protesto contra tarifas e impostos. Usando a merda num sentido mais palpável (e degustável), recorri à condição pessoal para verter a glosa nestes termos:
Antes sobrava arte e engenho
Pra glosar um mote ingrato;
Depois de cego, o recato
Daqui a pouco até nem tenho!
Agora, quando me venho,
Meu sonho é estar no lugar
Dum servo torpe e vulgar:
Coprófago tão voraz
Que não sobre num rapaz
Merda no cu pra cagar! [8.67]
GLAUCO MATTOSO
Poeta, letrista, ficcionista e humorista. Seus poemas, livros e canções podem ser visitados nos sítios oficiais:
http://sites.uol.com.br/glaucomattoso
http://sites.uol.com.br/formattoso