GLAUCOMATOPÉIA [#44]
Ano novo, vida nova. A partir de agora, esta coluna entra em nova fase. Se até aqui comentei e glosei motes tradicionais ou desentranhados de clássicos da poesia popular, doravante glosarei sonetos com sonetos, ou seja, cada soneto que eu tomar por mote dará ensejo a um soneto meu para reler o tema por outra ótica, mais cruel, despudorada, porca e anárquica, além de politicamente incorreta e veridicamente pessoal. Para começar, escolho um soneto do parnasiano paulista Martins Fontes sobre o tabagismo, que releio pelo ângulo feminino:
IMAGEM DAS IMAGENS [Martins Fontes]É o meu cigarro um típico resumo
Da ilusão entre as suas mutações.
De violetas ou rosas o perfumo,
E esta é a maior das minhas distrações.Provo-o, aspiro-o, enganando-me. E, no fumo,
Vejo em volutas as evoluções
Da fantasia a divagar sem rumo,
Dispersa em mil volatilizações.Fulgiu, queimou, viveu, mas de fugida.
E o prazer produzido foi mendaz,
Sua consolação dissaborida.E, finalmente, em cinzas se desfaz,
E é como tanta cousa, que há na vida,
Uma delícia que não satisfaz.
SONETO 850 DOS BAIXOS TEORES [Glauco Mattoso]
Mulher fumando é foda! Aquilo fede
que nem pólvora podre e nada poupa:
o cheiro pega em tudo, até na roupa
dos outros, e o perfume pouco impede.Se o papo rola em bar, quando ela arrede
seu pé dali, a toalha cheira a estopa
mofada e foi cinzeiro até da sopa
o prato esvaziado, e o copo excede.Fumaça ardida sopra ela na cara
de todos com quem fala, e do nariz
sai bafo de dragão que ódio dispara.Coitada, bem que tenta, como eu fiz,
livrar-se desse vício, mas a tara
podólatra e o cigarro pedem bis...