GLAUCOMATOPÉIA [#49]
Hoje escolhi este soneto do parnasiano paulista Amadeu Amaral sobre um tema pouco recorrido entre poetas: a inimizade. Afeitos mais ao amor (ainda que frustrado) do que ao ódio, os sonetistas raramente destrincham este sentimento adverso e corrosivo, ao qual adicionei minha pitada sadomasoquista e biográfica, como se vê na glosa abaixo.
BOM INIMIGO, BOA VINGANÇA [Amadeu Amaral]Nada é inútil, no entanto: um inimigo
não é o oposto do amigo que convém;
é, voltado do avesso, um bom amigo,
e podemos até querer-lhe bem...A amizade, alimento que bendigo,
freqüentemente a maus excessos vem,
e põe, não raro, a gente como um figo,
a arrebentar do miolo que contém.O inimigo, ao contrário, rói e suga;
de humores doentes minha carne enxuga;
e, nessa eucaristia singular,enquanto do meu ser ele se nutre,
vingo-me, em paz, do inofensivo abutre,
indo lá no seu sangue circular.
SONETO 595 COMISERADO [Glauco Mattoso]
Falando de inimigos, o Amadeu
achava que não são do amigo o oposto,
mas nutrem-se de nós e nos dão gosto
de deles nos vingarmos. Pensei eu:Foi só minha visão tornar-se um breu
e amigos desertaram, mas seu posto
às vezes é ocupado por um rosto
que ri de mim e faz que se doeu.Dizendo me entender e sentir dó,
consente que eu me humilhe e que, de quatro,
lhe lamba das botinas todo o pó.No fundo, seu apoio era teatro:
apóia, sim, em mim seus pés e só
desfruta quando o escuro me é mais atro!