Depois de Proust, passamos a entender que há
sempre um tempo dentro do tempo. Na sobreposição
e confusão de um com o outro, os diversos tempos retratam
às vezes movimentos que precisam ser analisados e avaliados,
que é sina da raça humana examinar tudo o que encontra
pela frente, a fim de escolher, ou não, o rumo necessário.
Coisas do tempo estão ligadas ao "chronos",
e é através da crônica, em geral escrita,
por um partícipe de acontecimentos que atingem seus contemporâneos,
que fixamos problemas e achamos soluções.
O título dos dois volumes de novos escritos
de José Sarney -"Crônicas do Brasil Contemporâneo"-
assume o compromisso de estudar o tempo que é dele e nosso,
escrevendo. Porque sabemos que o autor não se apresenta
apenas como um político profissional que escreve: ele é,
na realidade, um escritor que também faz política.
Seu romance "O Dono do Mar" é
uma obra de ficção que fala por nós e nos
revela como povo e como a nação. Vivia eu na Europa
nos anos 80, quando tive convites de uma editora inglesa e outra
alemã para escrever prefácios para volumes de contos
de Sarney que saíam naqueles idiomas. O tradutor alemão
Curt Meyer-Clason disse-me então de sua alegria ao ler
esses contos e surpreender, no estilo de Sarney, belas palavras
luso-brasileiras que desconhecia.
Nos dois volumes publicados aprofunda-se José
Sarney no exame de nosso tempo, visto do Brasil e dos vários
ângulos que a diversidade brasileira permite. Lembrando
sua atitude -a única de um governador de então (Sarney
governava o Maranhão na época)- contra o Ato Institucional
nº 5, leva o leitor a uma visão do Brasil registrada
em estilo de absoluta contenção e firme rijeza.
Pelas crônicas de agora, acompanhamos o
tempo dentro do tempo, que Sarney revela, não só
em acontecimentos, com cenas que possamos ter conhecido na época,
mas colhendo também a verdade intrínseca de cada
trecho de nossa vida nacional e de nossa posição
no contexto de uma contemporaneidade que nos situa no mundo.
O que houve no Brasil e fora dele entre 1998
e 2002 está registrado neste levantamento de Sarney que
-jornalista e escritor- lembra Odylo Costa Filho, o pintor Floriano
Teixeira, Carybé, Manuel Bandeira, fala de Jorge Amado
em seus últimos tempos de vida, pronto para entregar seu
tempo ao futuro. Dos conselhos que dá, cita Sarney o de
Baudelaire que nos ensinou: "Temos de ser absolutamente modernos".
No meio de suas lembranças, propõe
questionamentos antes de cada crônica, dá notícias
do momento, numa espécie de prestação de
contas ao Tempo, que está sempre ao lado, esperando.
Em suma, "Crônicas do Brasil Contemporâneo",
de José Sarney, junta dois volumes de A Girafa que merecem
leitura e meditação.
Antonio Olinto é crítico literário e
membro da Academia Brasileira de Letras.
(crítica publicada originalmente na Folha de S.Paulo
na edição de 22 de maio de 2004, no caderno Ilustrada,
página E-5).