Neste ano o jornalista, contista e romancista
José Cândido de Carvalho estaria completando 90 anos.
Seus amigos, dentre os quais me incluo, sentem falta do convívio
alegre que mantinha com todos. Vale recordar a sua grande realização,
o livro "O Coronel e o Lobisomem", que teve a sua primeira
edição em 1964.
Zé Cândido amava a sua origem campista. Não
só ambientou obras na cidade de Campos, como contava histórias
a respeito da indiscutível valentia dos goitacazes. Só
contraía o rosto quando alguém duvidava da veracidade
dos seus relatos. Em Campos, estudou em escolas públicas
e trabalhou em diversas funções, inclusive como
ajudante de farmacêutico. Como jornalista, começou
como revisor na redação de "O Liberal",
tendo atuado depois como redator em outros jornais.
Outro famoso campista foi José do Patrocínio, jornalista
e romancista como José Cândido. A busca incessante
pelo ideal abolicionista de Patrocínio se assemelha, com
certeza, à luta de José Cândido em prol da
cultura brasileira. A trajetória de coincidências
entre os dois grandes brasileiros também inclui o fato
de ambos terem pertencido à Academia Brasileira de Letras.
Com certeza, o ambiente cultural da cidade do Rio de Janeiro teve
grande influência nas suas obras.
Na Academia Brasileira de Letras, foi eleito em 23 de maio de
1973 para a cadeira nº 31, sucedendo a Cassiano Ricardo.
Teve em Rachel de Queiroz, também, uma grande amiga, como
fui testemunha. Na crítica a pessoas e costumes eram muito
parecidos. E riam, no chá ou fora dele, para desespero
dos que estavam de mal com a vida.
Muita gente gostaria de saber como era o seu comportamento na
ABL.
Convivemos durante cinco anos. Rimos muito do seu incomparável
espírito crítico e da forma como debochava dos falsos
e efêmeros poderosos. Com uma piada, acabava com a pose
de qualquer um. E sabe-se lá a razão disso, sempre
ao lado do sóbrio e quase zangado José Honório
Rodrigues, um dos grandes historiadores do Brasil. A dupla era
originalíssima, pois vivia unida pela diversidade de temperamentos,
um aberto, outro fechado. Foi na diferença que eles encontraram
as afinidades que podem explicar uma grande estima.
Tendo convivido muitos anos com Raimundo Magalhães Jr.,
na revista "Manchete", e como madrugadores que éramos,
tornamo-nos grandes amigos.
Ele foi um dos astros da revista "O Cruzeiro", na qual
escreveu admiráveis biografias. E manteve uma relação
mais íntima com o tradicional jornal "O Fluminense",
de Niterói, onde era titular de uma apreciada coluna.
Durante a minha convivência com José Cândido
de Carvalho, observava muito o seu comportamento moral e ético.
Isso fez com que eu verificasse a grande figura humana que ali
existia. O comportamento do autor de "O Coronel e o Lobisomem"
o aproxima, de uma certa forma, do escritor português José
Saramago, que disse certa vez: "Ao romance e ao romancista
não restava mais que regressar às três ou
quatro grandes questões humanas, talvez só duas,
vida e morte, tentar saber já nem sequer donde viemos e
para onde vamos, mas simplesmente quem somos".
Também em certo momento, Saramago declarou que, "apesar
de tudo, não creio que o mal seja o motor que faz bater
o coração humano. Embora me pareça igualmente
que não é o bem que o faz bater".
Lançado em 1964, o livro "O Coronel e o Lobisomem"
transformou-se na obra-prima de José Cândido de Carvalho.
E não poderia ser diferente, já que desde o início
gerou curiosidade pela originalidade da linguagem utilizada, com
muito humor, realçando o falar simples do povo. Escrito
na primeira pessoa, ao mesmo tempo em que enfoca os contrastes
das vidas rural e urbana, toda a trama se desenvolve em torno
do que poderíamos chamar de sobrenatural, fantástico,
absurdo, místico e/ou misterioso. Essa característica
já fez com que o nosso escritor fosse comparado aos grandes
mestres da literatura latino-americana, como Gabriel García
Márquez e Vargas Llosa, que privilegiam a magia em suas
obras, vide "Cem Anos de Solidão", de Márquez,
com a sua enigmática Macondo. A obra também nos
leva a algumas lembranças de Guimarães Rosa, em
particular "Grande Sertão - Veredas".
No livro de Zé Cândido, a história do coronel
Ponciano de Azeredo Furtado é contada por ele mesmo. Dono
de fazendas no interior do Estado, abastado, mas apaixonado pelos
acontecimentos da cidade e pelos negócios, ele procura,
sem muito sucesso, conviver também no meio urbano. O resultado
dessa luta interna, dessa contradição, não
foi nada gratificante para o nosso herói (ou seria o anti-herói,
como Macunaíma, de Mário de Andrade). Ponciano acaba
sendo duramente nocauteado pela vida, enlouquecendo e perdendo
a fortuna.
É por essas e por outras que o acadêmico Carlos
Heitor Cony considera Zé Cândido "um dos nomes
mais importantes da literatura brasileira de todos os tempos".
Arnaldo Niskier é secretário de Cultura do Estado
do Rio de Janeiro, e membro da Academia Brasileira de Letras.
(artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo, no primeiro
caderno , página A3, na edição de 19 de maio
de 2004)