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  Das torres ao polegar da infâmia
Candido Mendes
 
   
 

A foto da dupla de beleguins-soldados, polegar ao alto, frente à pirâmide da nudez retorcida dos detentos de Bagdá vale a da menina de My Lai do desamparo total, fugindo do napalm, no Vietnam, há 30 anos. Empatam no horror que vira, por insuportável, uma página da crueldade dos homens. Esse toque de repulsa definitivo é o de uma saturação que chega ao inconsciente social generalizado de nosso tempo. O riso da soldado England, vinda de Fort Ashby, cidadezinha da América profunda, voluntária da cruzada de Bush, é, de saída, o do prazer perverso, de posar frente à pilha dos corpos nus e roliços, superpostos à sua frente, carne cega e submissa. Mas a gargalhada que se segue é de um desfrute do poder ou da impunidade sem limites, nascido das star wars, de suas máquinas apocalípticas de devastação, impelidas ainda pela forra das torres de Manhattan pelo povo eleito - como salienta o presidente Bush -, que não tem mais contendor para as guerras que fizer e pelo tempo que exigir o senhorio da Casa Branca.

O que estarreceu o mundo, há dias, é mais que a repetição da tortura, no preciso conceito em que se a define na escala das violências contra os direitos humanos. Certo, nas fotos da abominação ainda aparecem iraquianos encapuzados, ligados aos fios elétricos dos choques de toda ''guerra suja'', do forçamento da dor imposta ao prisioneiro, ao resistir à entrega da informação e optar pelo despedaçamento do próprio corpo. O que determina o espetáculo universal, começado na prisão de Abu Ghraib, é o castigo da humilhação, no exibir-se o adversário vilificado, na quebra de todo respeito próprio, e a se abater - pelos flashes sobre flashes das cenas - diante de todo o povo, posto em abjeção. Os instantâneos metódicos vão além do mero voyeurismo sadístico, e bem mostram os destinatários finais do postal da pornografia cívica, de que se faz a imagem dos derrotados, detidos muitas vezes a esmo, e pasto, na hora, para a sevícia visual que reclama o recado do triunfo hegemônico, começado pelo abate de Saddam.

O dedo em riste de Lynndie, no deboche da mira sobre a genitália dos humilhados, ganha uma dimensão monumental, indemolível. Permaneceu a foto por meses enterrada no roldão dos relatórios das autoridades, a rotina passando à desatenção do secretário Rumsfeld, como mais um protocolo carcerário, de desmoralização do adversário na nova era de modelização americana do Oriente Médio. Era detalhe da quebra da alma dos combatentes insurgentes, tão minuciosa, no grotesco dos corpos superpostos, as cabeças no desengonço mortificante dos sacos de papel, das calcinhas atochadas nos rostos ou da violência sexual, no cerne mesmo do agravo à cultura islâmica. Os flashes estimulavam a improvisação de novos requintes, e é o que autoriza o mais de riso da trupe dos algozes, tão simples e de boa índole, vindos do interior do país. Transtornam-se, entretanto, nessa nova impunidade que lhes estimulou aos requintes de aviltamento.

O documental fotográfico que dormiu nos arquivos de Rumsfeld remonta há meses, quando do comando da masmorra pela general Karpinski, em nova etapa da tarefa de que já se desincumbira no santuário da violência final de Guantânamo. Que precedentes lá deixou, e dentro de que limites, estimulados pelo muro de silêncio absoluto?

Diante do horror às fotos dos nus da abjeção, apertado, de saída, contra o xador das mães libanesas, como poderia ser das iranianas, egípcias ou das nossas perenes madres de Mayo, veio no post scriptum do assessor da hora o pedido de desculpas do inquilino do Salão Oval. Tartamudeado, como o de Rumsfeld, como se todo o incidente fosse lamentável deslize na verdadeira terraplenagem histórica de pôr-se em ordem o primeiro país prometido à liberação, e à boa nova anunciada por Washington. Claro, a infrigência poderá levar os algozes a alguma baixa de patente, como até agora é o máximo de pena anunciado, junto ao corretivo de alguns meses de detenção ou reprimendas oficiais no pátio militar. Que mudança pode-se aguardar, na blandícia dessas regras, diante do mundo que verá as primeiras cortes marciais saídas do estremunho dos deuses da ocupação? Cada história dos denunciados remete a padrões desta América profunda, cuja espontaneidade é, em si mesma, a força da extraordinária nação que nos deu as primícias da democracia contemporânea. Mas a entorse pode vir rápido, nesta conscrição que o 11 de setembro permitiu a um misto de pânico e vingança da superpotência, a calçar o tacão da hegemonia. Afinal os algozes e seu excesso de galhofa são ciclistas de fim de semana, pescadores, do papo e do sorvete na praça das microcidades e que abraçaram a carreira das armas para participar do bom sonho de mudança do interior americano. Esse mesmo que só em 19% se sensibiliza ao horror lá fora, mas quando em armas personifica instintivamente a nova impunidade do triunfador.

Lynndie, talvez, agora, sofra mais que a perda da patente de cabo ou anspeçada. E a família já se conforma com um pouco mais de espera para o retorno ao regaço. E ao votar novamente em Bush, a 4 de novembro próximo, como a América inocente e impune, tal a garota de Fort Ashby.

 

Candido Mendes é da Academia Brasileira de Letras e do Conselho Internacional de Ciências Sociais (Unesco).

(artigo publicado originalmente no Jornal do Brasil na edição de 17 de maio de 2004)

 
     
     
 

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