GLAUCOMATOPÉIA [#2]
[1] Ao resenhar a antologia OS CEM MELHORES POEMAS BRASILEIROS DO SÉCULO, Pedro Lyra criticava os critérios de escolha do organizador Italo Moriconi. Entre outras coisas, o poeta e professor cearense estava bravo porque Moriconi incluiu como representativo do cordelismo um poema cujo personagem Totonho engravidara inesperadamente. Nisso o desespero de Lyra se justifica, pois, como ele próprio diz, o gênero é "reconhecidamente viril". Foi justamente por esse motivo (além, é claro, da minha admiração pela cultura nordestina) que decidi introduzir a temática homossexual no glosismo, irmão gêmeo do cordelismo e ambos do sexo masculino, apesar das más línguas que poderiam alegar que, se cordel é masculino, glosa é nome de mulher. A ambigüidade apimenta o desafio, principal ingrediente da poesia de tradição oral. Como escrevi num artigo sobre outro cearense (o cantador Cego Aderaldo) para a revista LITERATURA, editada pelo também cearense Nilto Maciel, "[...] empresto meu próprio estilo ao gênero, mantendo o senso de humor inerente ao fescenino, porém encarnando, na primeira pessoa, o papel cumulativo do homossexual e do cego vitimizado, coisa que para o machismo dos demais cantadores nunca passa da terceira pessoa, alvo das gozações. Mais uma vez, introduzo algo de novo num gênero antigo, tal como fiz no soneto. Dificilmente, no Nordeste, um cego assumiria a inferioridade da cegueira juntamente com a degradação da homossexualidade."
[2] Aliás, mais que machismo, trata-se de "cabramachismo", malgrado o termo "cabra macho" encerrar uma contradição incômoda, pois se o sujeito é macho de verdade devia ser um "bode macho" e não a respectiva fêmea travestida pelo artigo e pelo adjetivo. Mas essas peculiaridades dão toque pitoresco à língua portuguesa, aquela mesma que diz "Pois sim!" quando discorda e "Pois não!" quando concorda...
[3] Para exemplificar o cabramachismo dos glosadores e meu próprio "xibunguismo da mulesta", escolhi a dedo um mote que visa encurralar o poeta e testar-lhe, duma só cajadada, a versatilidade e a virilidade. Já falei de Moysés Sesyom nesta coluna, e tratarei especialmente dele mais tarde. Agora recorro a um de seus discípulos, Luiz Xavier, radicado, como o mestre, na região do Açu, no Rio Grande do Norte. Segue o mote comprometedor e a quadradécima com que Xavier se saiu no melhor estilo "não me comprometa":
NA PRÓXIMA GERAÇÃO[4] Quanto a mim, substituí não apenas o termo "geração" pelo mais preciso "encarnação", como encarnei a persona assumidamente fodida, no melhor (ou pior) estilo "desgraça pouca é bobagem, santa":
EU PREFIRO SER MULHER!Quero mais depravação,
Ser livre de pensamento,
Dar figa pra casamento
Na próxima geração.
Vou viver de amigação,
Ser dona de cabaré,
Vou foder como eu quiser,
Eis a minha pretensão:
Não quero ser fresco, não,
Eu prefiro ser mulher.
Mais oprimidos, quem são?[5] Outro que se saiu galhardamente do repto foi meu contemporâneo de contraculturas (e conterrâneo, ou antes, consubterrâneo de undergrounds) Bráulio Tavares, o paraibano naturalizado carioca que, duas décadas após ter colaborado no meu JORNAL DOBRABIL, volta a me suprir de surpresas, devolvendo esta glosa:
Negros? Índios? Pobres? Loucos?
Não quero ser desses "poucos"
Na próxima encarnação!
A casta dos sem-visão,
Mais baixa que outra qualquer,
Ao abuso é de colher!
Se é para chupar caralho
E tomar no cu que valho,
Eu prefiro ser mulher! [8.75]
Vivo cheio de tesão
Porém não como ninguém...
Mas espero me dar bem
Na próxima encarnação.
No Brasil, só sapatão
Come as gatas que bem quer;
Toda xota que vier
Pela "colega" é comida...
Se é assim, na outra vida
Eu prefiro ser mulher.