GLAUCOMATOPÉIA [#23]

[1] O que os poetas já choraram pela infidelidade de suas amadas não está no gibi, está em todas as antologias. Outro dia, ao fazer um levantamento dos sonetos sobre o ciúme, garimpei exemplos arcádicos e modernistas, barrocos e parnasianos, românticos e simbolistas. Vinicius, um dos modernos pesquisados, chegou a compor sonetos sobre os quatro elementos só porque se sentiu corneado até por fenômenos naturais. Humorismo à parte, o machismo dele e doutros poetas me levou a refletir que não existe pior humilhação para um homem que perder a mulher para um homem mais jovem que ele, já que o rival lhe frustra todas as vaidades duma só tacada, da virilidade à idade. Lembrei dum caso verídico e fiz o seguinte soneto:

SONETO 585 REPROVADO

Não há nada pior que dor de corno
ao homem cuja esposa o trai no acinte.
Conheço caso assim: como um pedinte,
foi ele além do ponto de retorno.

Sabendo que ela o trata como adorno
supérfluo e descartável, um requinte
na mente do rival, que tem uns vinte
a menos, já desenha seu contorno:

Na frente da mulher, o cão devoto
recebe do moleque a imposição:
lamber o pó da bota que anda em moto!

De bruços, obedece, e outras lhe são
impostas pela amada que, na foto,
parece a mestra dando uma lição!

[2] Lógico que Bocage não se furtaria ao tema, que foi inclusive abordado criticamente quanto aos portugueses em geral, num impiedoso retrato: se todos os machos se metem a garanhões, o reverso da medalha é que todos acabam corneados, já que cada um não se contenta com sua respectiva fêmea. Fica isto claro neste soneto, a despeito dalgum ponto obscuro após sucessivas e clandestinas transcrições:
SONETO DO CORNO CHOROSO

Se o grão serralho do Sophi potente,
Ou do Sultão feroz, que rege a Trácia,
Mil Vênus de Geórgia, oh! da Circássia
Nuas prestasse ao meu desejo ardente!

Se negros brutos, que parecem gente,
Ministros fossem de lasciva audácia,
Inda assim do ciúme a pertinácia
No peito me nutria ardor pungente!

Erraste em produzir-me, ó Natureza,
Num país onde todos fodem tudo,
Onde leis não conhece a porra tesa!

Cioso afeto, afeto carrancudo!
Zelar moças na Europa é árdua empresa,
Entre nós ser amante é ser cornudo.

[3] Ao glosar um fragmento do soneto acima, deixei de lado a disputa da mulher amada para me concentrar na crítica ao machismo selvagem, tomando como fonte meu próprio passado infantil à mercê de potenciais rivais que me desonraram antes mesmo de pintar alguma garota como pretexto. Eis o dístico tirado e a minha glosa no ritmo martelado:
NUM PAÍS ONDE TODOS FODEM TUDO,
ONDE LEIS NÃO CONHECE A PORRA TESA!

Imagine um pivete mais taludo
Que um garoto que enxerga mal e é pego
Pela turma do cara e pede arrego,
Num país onde todos fodem tudo!
O mais fraco sou eu, que a boca grudo,
Como mandam, naqueles pés-de-mesa,
Cujas glandes me entopem de torpeza!
Se não há, no poder, quem não se esbalde,
Que dizer duma gangue de arrabalde,
Onde leis não conhece a porra tesa! [8.90]

GLAUCO MATTOSO
Poeta, letrista, ficcionista e humorista. Seus poemas, livros e canções podem ser visitados nos sítios oficiais:
http://sites.uol.com.br/glaucomattoso
http://sites.uol.com.br/formattoso
 

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