GLAUCOMATOPÉIA [#26]

[1] Já virou hábito referirem-se a mim como herdeiro de Gregório de Matos, mas, em termos genericamente lusófonos, não há dúvida que me habilito no espólio de Bocage e, por tabela, no de Camões. Os portugueses não gostam lá muito dessa história. Uma reputada camonista repudiou meus sonetos, não quanto à técnica (diz ela: "...quanto aos seus poemas, eu acho-os reveladores de mestria poética..."), mas quanto à temática, que ela afirma não ser a faceta que os conterrâneos mais apreciam em Bocage: "Reconheço-lhe a qualidade poética na feitura dos sonetos, que, a meu ver, têm mais de Bocage do que de Camões (como sabe, Bocage foi um digno sucessor de Camões, imitando-lhe o fazer poético, excepto num ponto: na profusão bocagiana de poesia satírica e erótica, roçando quase o pornográfico, justamente aquele que me agrada muito pouco e que, tanto quanto sei, é mais conhecido no Brasil que em Portugal)."

[2] Na verdade, antes de camonistas ou bocagistas, tais autoridades são mesmo é moralistas, e receber crítica dum puritano é o melhor atestado de proficiência que um poeta fescenino poderia almejar. A minha filiação camoniana/bocagiana dediquei este soneto de 1999:

SONETO 326 PATERNAL

Por que Deus nunca é mãe? Por ser severo?
O homem necessita autoridade.
Só ama a quem receia, essa é a verdade.
Por isso amava um Pai, temia um clero.

Não é o rigor paterno que venero,
mas sim a sapiência duma idade
que já conhece Cristo, Buda e Sade,
Homero e Judas, Sócrates e Nero.

Camões na poesia sirvo e amo,
"mas não servia ao pai, servia a ela",
pois sou filho bastardo desse ramo.

Em meio a numerosa parentela,
me sinto até caçula quando chamo
Bocage de titio, mana a Florbela.

[3] Embora, na agonia final, Bocage houvesse ditado um soneto pedindo que lhe rasgassem os versos obscenos, em vida o poeta nunca abandonou a putaria. Abandonou, ocasionalmente, as putas, isso sim, e a tal "arrependimento" lhe devemos um dos seus mais homossexuais sonetos, do qual extraí o seguinte mote para mais uma glosa martelada:
[SONETO DO ADEUS ÀS PUTAS]

Que eu não possa ajuntar como o Quintela
É coisa que me aflige o pensamento;
Desinquieta a porra quer sustento,
E a pívia trata já de bagatela.

Se n'outro tempo houve alguma bela
Que o amor só desse o cono penugento,
Isso foi, já não é; que o mais sebento
Cagaçal quer durázia caravela.

Perdem saúde, bolsa, e economia;
Nunca mais me verão meu membro roto;
Está aí mi'a porral filosofia.

Putas, adeus! Não sou vosso devoto;
Co'um sesso enganarei a fantasia,
Numa escada enrabando um bom garoto.

[3] Agora, o mote e minha glosa:
ISSO FOI, JÁ NÃO É; QUE O MAIS SEBENTO
CAGAÇAL QUER DURÁZIA CARAVELA:

"Os Lusíadas" são um monumento,
Mas Camões já passou por clandestino
E Bocage fingiu ser bom menino...
Isso foi, já não é. Que o mais sebento
Dos prepúcios no gozo agora agüento
Entre os lábios, na língua e na goela!
E se explica por que meu verso fela
Tanto quanto se rende ao Lusitano:
Pica é pica e epopéia: quer mundano
Cagaçal, quer durázia caravela! [8.93]
 

GLAUCO MATTOSO
Poeta, letrista, ficcionista e humorista. Seus poemas, livros e canções podem ser visitados nos sítios oficiais:
http://sites.uol.com.br/glaucomattoso
http://sites.uol.com.br/formattoso
 

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