GLAUCOMATOPÉIA [#43]

[1] O famoso soneto em que Bocage auto-retrata sua figura física e moral já me rendera um mote agalopado, que glosei no capítulo 16 desta coluna. A tentação da auto-análise é irresistível em todo poeta que se pretenda inconfundível e ao mesmo tempo nitidamente adepto de determinada linhagem estética, ou anti-estética, como no meu caso. Por isso me caricaturei em diversos sonetos, um dos quais ironiza o apelido de "poeta da crueldade" com que fui mimoseado, quanto ao qual só tenho a ressalvar que rotula uma, mas não a única, de minhas facetas:

SONETO 509 ASSUMIDO

Mattoso, que nasceu deficiente,
ainda foi currado em plena infância:
lambeu com nojo o pé; chupou com ânsia
o pau; mijo engoliu, salgado e quente.

Escravo dos moleques, se ressente
do trauma e se tornou da intolerância
um nu e cru cantor, mesmo à distância,
enquanto a luz se apaga em sua lente.

Tortura, humilhação e o que se excreta
são temas que abordou, na mais castiça
e chula das linguagens, o antiesteta.

Merece o que o vaidoso não cobiça:
um título que, além de ser "poeta",
será "da crueldade" por justiça.

[2] Recapitulemos o soneto bocagiano para, em seguida, glosarmos, também de maneira auto-referente, o outro mote dali desentranhado:
AUTO-RETRATO [Bocage]

Magro, de olhos azuis, carão moreno,
Bem servido de pés, meão na altura,
Triste de facha, o mesmo de figura,
Nariz alto no meio, e não pequeno.

Incapaz de assistir num só terreno,
Mais propenso ao furor do que à ternura,
Bebendo em níveas mãos por taça escura
De zelos infernais letal veneno.

Devoto incensador de mil deidades,
(Digo de moças mil) num só momento
Inimigo de hipócritas, e frades.

Eis Bocage, em quem luz algum talento:
Saíram dele mesmo estas verdades
Num dia, em que se achou cagando ao vento.

[3] Eis o mote e minha glosa:
INCAPAZ DE ASSISTIR NUM SÓ TERRENO,
MAIS PROPENSO AO FUROR DO QUE À TERNURA...

Quando, aos nove, currado, temo e peno,
De joelho ante bimbas de capetas,
Sou forçado a uma cena de chupetas
Incapaz de assistir num só terreno!
Indagar a razão por que enveneno
Meus poemas com sádica tortura
É escusado, pois acha quem procura:
Quem sofreu, que nem eu, sujo tormento,
Só podia virar vate nojento,
Mais propenso ao furor do que à ternura! [8.88]

GLAUCO MATTOSO
Poeta, letrista, ficcionista e humorista. Seus poemas, livros e canções podem ser visitados nos sítios oficiais:
http://sites.uol.com.br/glaucomattoso
http://sites.uol.com.br/formattoso

 
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