GLAUCOMATOPÉIA [#45]
Hoje escolhi um soneto do pré-modernista fluminense Raul de Leoni, um dos mais estranhos de sua escassa e preciosa produção, poema que retrata a tênue ambigüidade entre amor e ódio, submissão e rebeldia, lealdade e traição, admiração e inveja, passividade e reação... enfim, masoquismo e sadismo. Aos papéis intercambiáveis adicionei minha dose de cinismo, e o resultado vai glosado no soneto logo abaixo ao de Leoni.
DESCONFIANDO [Raul de Leoni]Tu pensas como eu penso, vês se eu vejo,
Atento tu me escutas quando falo;
Bem antes que te exponha o meu desejo
Já pronto estás correndo a executá-lo.Achas em tudo um venturoso ensejo
De servir-me de servo e de vassalo;
Perdoa-me a verdade num gracejo.
Serias, se eu quisesse, o meu cavalo...Mas não penses que estólido eu te creia
Como um Patroclo abnegado, não:
De todos os excessos se receia...O certo é que, em rancor, por dentro estalas;
Odeias-me, que eu sei, mas, histrião,
Beijas-me as mãos por não poder cortá-las...
SONETO 534 MANCOMUNADO [Glauco Mattoso]
Te beijo as mãos por não poder cortá-las
e os pés por não poder pisar-te a face.
Odeio-te, mas brinco que te amasse
a ponto de inalar o odor que exalas.Bem sei que habitarei tuas senzalas
porque não tens quem mais se dedicasse
a teu prazer: ninguém que assim abrace,
de bruços, tuas botas que mais ralas!Por dentro, me revolto quando as lambo;
por fora me sorris, me crês submisso;
te fazes de mandão; eu, de molambo.Se queres, serei teu cavalariço,
cavalo, até! Serás meu Thor, meu Rambo,
meu Átila! Porém sem compromisso!