GLAUCOMATOPÉIA [#55]
CÁRCERE PRIVÊ
SONETO 707
Mulher sabe mandar: quando domina,
um homem a seus pés rebola e dança
bonito! A fêmea altiva não descansa
até que humilhe a raça masculina!
A bota tem a ponta aguda e fina,
e o salto o pé lhe encurva à semelhança
dum arco triunfal! Enquanto amansa
o macho, ela lhe apóia essa botina!
Ordena-lhe que lamba e, se preciso,
aplica-lhe a chibata sem reserva!
O cara iguala a língua ao sujo piso!
Um outro macho, rindo, a cena observa:
é dela o companheiro, e seu sorriso
sugere que a mulher lhe seja a serva...
O soneto acima me veio após ter recapitulado perante alguns amigos as bissextas performances que desempenhei em público. Público interno, diga-se, já que o SM é domínio privado. Clubes do tipo sempre existiram, mas são como as pizzarias: quando estão perto, não servem nosso prato predileto; quando servem, ficam longe; quando atendem a domicílio, cobram caro. No meu caso deu-se o inverso do habitual: em vez de procurar, fui procurado por um clube, mas só duas vezes na vida. Uma quando ainda enxergava, ocasião em que fui dominador. Outra quando já estava cego e, nem que quisesse, não poderia assumir postura diferente da posição submissa. Desta vez o clube era o Santo Ofício, dirigido pela notória Beatrix Danteska, conhecida no meio como dominadora radical, isto é, que não usa imitações de chicote e costuma tirar sangue quando castiga seus servos. Beatrix é minha leitora desde quando publiquei a primeira edição do MANUAL DO PODÓLATRA AMADOR, nos anos 80, mas só me chamou quando o Santo Ofício passou a funcionar em novo endereço, mais espaçoso e cômodo, aproveitando as instalações duma casa noturna que, durante a semana, reservava uma noite para receber os sócios em sessões fechadas.
— A Beatrix não é aquela que assinava uma coluna nas revistas masculinas? — lembrou um dos amigos.
— Ela mesma. Ao contrário da Wilma Azevedo, que fazia questão de preservar o lado afetivo e o mútuo consentimento, a Bia sempre se declarou a favor da impiedade e contra o escrúpulo.
— E você não teve receio de aceitar um convite dela? — indagou outro amigo.
— Não, porque ela me garantiu que eu não seria usado como escravo de amarras nem de surras e que meu papel se limitaria a servir de escabelo. E o que a Bia determina ninguém desautoriza. Ela sabe se impor. Por isso mesmo é que a própria Wilma, quando visitou o clube, se sentiu desrespeitada pela atitude arrogante da Bia. Mas ela é assim com todo mundo, até com as colegas mais veteranas... Faz parte da imagem que construiu.
— Escabelo? Que negócio é esse? — inquiriu outro amigo.
— Uma espécie de banqueta pra apoiar os pés. Vou explicar: o clube funcionava num recinto grande, mas cada ângulo formava um ambiente e de todos eles dava pra assistir o que rolava no palco central, junto à pista de dança e aos lugares da platéia. Era onde se destacava o pelourinho dos açoites. Em volta do pelourinho pendiam do teto umas correntes e correias pra pendurar várias pessoas ao mesmo tempo, em diferentes posições. Num dos cantos estava o bar, noutro uma mesa de reuniões, noutro os divãs e poltronas cativas, noutro o "meu" canto, mobiliado como sala de estar, com um sofá semicircular, mesinhas de mármore aqui e ali, painéis medievais e paredes de castelo contrastando com futuristas telas suspensas. Na frente do sofá tinha um pufe bem grande, forrado do mesmo couro roxo-funerário que coloria toda a mobília. Fui colocado bem ali, junto do pufe, tendo que ficar de quatro o tempo todo, paradão, como se fosse um prolongamento do pufe. Pra caracterizar ainda mais minha função, me vestiram com camiseta e calção da mesma cor dos estofados e almofadas. Fiquei ali à disposição de quem quisesse descansar os pés em cima.
— Não encapuzaram você?
— Nem capuz, nem venda, nem máscara, nada. Só tive que raspar a careca com navalha, pra ficar bem lisa contra a luz. Alguns escravos eram vendados, mas no programa da casa eu já estava catalogado como "cego aproveitável" e destinado a "relaxar ou engraxar pés e calçados" dos freqüentadores. O programa explicava que, como cego, eu já estava permanentemente sob castigo e privado da liberdade pela venda "natural" da cegueira.
— Esse programa especificava as funções de todo mundo?
— Exato. Cada mestre ou mestra, cada servo ou serva, cada performance, cada leilão de escravos, cada aula de tortura e cada palestra, tudo estava previsto e constava do programa. A Bia sempre foi muito organizada.
— Mas você só serviu de escabelo, mais nada?
— Não ficou nisso, não: eu estava programado pra suportar os pés de quem sentasse no sofá, mas se alguém pusesse o pé no pufe ou na minha cara, eu tinha que lamber até que mandassem parar. Quando tinha gente apoiando o pé nas minhas costas, eu ficava reto, com joelhos e cotovelos no carpete. Quando as costas estavam livres eu podia apoiar as mãos no chão e esticar os braços. Assim, mesmo continuando ajoelhado e sem tirar as mãos do chão, minha cabeça podia alcançar o pé de quem estivesse usando o pufe. Quando eram várias pessoas que se acomodavam, uma punha os pés na altura das omoplatas, outra na região dos rins, e uma terceira podia esticar as pernas de modo que os pés ficassem no chão, bem debaixo da minha cara. Era só pôr a língua pra fora e executar o serviço. Enquanto rolava a programação e os ruídos iam variando, desde o estalo das chibatadas, gritos e ordens, papos e risos, até os copos tilintando, eu permanecia ali, só escutando e trabalhando.
— Você não podia falar nada?
— Só responder, se alguém me perguntasse.
-- E perguntavam? Que tipo de pergunta?
— Quase nada. O pessoal ia e vinha, sentava e levantava, e eu só sentia o peso no lombo, um bico de bota me levantando o queixo, um salto alto me cutucando a nuca, uma sola empurrando a bochecha, um peito pressionando a boca... e só me restava esticar a língua e agüentar as risadinhas, principalmente das mulheres, tanto as dominadoras quanto as próprias submissas, que aproveitavam pra curtir uma pausa de descanso. Mas de vez em quando alguém puxava papo, geralmente pra dar ordens, tipo "Lambe o vão dos dedos! Chupa o dedão! Massageia a sola!" (se o pé estava descalço) ou "Lustra aí, engraxate! Capricha!" (se estava calçado)... De vez em quando pintava uma pergunta pra satisfazer a curiosidade de quem curte a desgraça alheia.
— Lembra de alguma pergunta em particular?
— Lembro de dois sujeitos mais interessados na minha condição de cego. Um tinha cargo em Brasília, era assessor parlamentar ou coisa assim, e mantinha várias escravas, que açoitava e leiloava no clube. Uma hora ele passou um intervalo inteiro refestelado no sofá, bebendo, fumando, papeando com amigos. Usava bota sem cadarço, e esticou o pezão em cima do pufe, depois de me chutar de leve a orelha. Quando comecei a passar a língua no couro fino, ele resolveu me interrogar: "E aí, ceguinho, como vai a vida? Deve ser uma merda ser cego e não poder apreciar o show, né mesmo? Você não fica com inveja até das escravas que estão amarradas lá na frente? Elas pelo menos conseguem ver a cara de gozo da platéia na hora de serem flageladas... Você só pode se contentar em ter essa utilidade, né mesmo? Que chato, né mesmo? O jeito é se esforçar, nada de moleza, hem? Não esquece de limpar bem a sola, hem?" E eu só respondia "Pois é, patrão! O jeito é me conformar, né, patrão?" E ele ria, que se divertia, com a minha paciência de penitente. Entre uma pergunta e outra, repetia: "Vai, ceguinho, mostra aí sua alegria de viver! Lambe com vontade!"
— Nada sarcástico, o cara! E o outro, falou no mesmo tom?
— Quase. Era um ex-vigilante de banco que passou a trabalhar como segurança duma loirona "emergente", a Condessa Vanessa, que era mestra habituê no clube. Ele usava botas grosseiras, de cadarço, tipo coturno, e pisou forçando minha cabeça até o chão antes de acomodar as pernas no pufe e ordenar a engraxada. Mal comecei a espalhar a saliva pelo couro gasto, e ele me crivou de perguntas aparentemente humanas: "Você é cego de nascença? Ah, não? É recente? Já tava preparado pra perder a visão? Conseguiu se adaptar? Acha que algum dia vai superar o trauma?" De repente, parecia esquecer qualquer preocupação com o drama dum deficiente e comandava secamente: "Continua engraxando!" Eu me calava, sem graça, e voltava a lamber o botinão, de cima a baixo. Aí ele retomava as perguntas no mesmo tom compreensivo: "Como você se sente agora? Pensa na cegueira o tempo todo? Você se acha injustiçado?" E logo vinha a ordem: "Vai, limpa aí! Quero ver essa sola lavadinha, certo? Quero ver sua capacidade de agüentar essa barra!" Eu punha outra vez a língua pra funcionar, enquanto ele comentava, meio que pensando em voz alta: "Porra, ainda bem que uma zica dessas não aconteceu comigo! Deve ser um inferno ficar nessa situação, sendo obrigado a se rebaixar assim só pra ter uma chance de se consolar no masoquismo! Eu não queria estar no seu lugar, cara! Vai, faz o que foi reservado pra você! Capricha nessa faxina aí!" As perguntas ele fazia com voz mansa, e as ordens e comentários com acento grave, como um sargento instruindo seus recrutas.
— E como você sabia quem era quem? Quem foi que lhe contou?
— Um amigo da Bia, que ela encarregou de ficar por perto, vigiando pra que nenhum doido fora de controle aparecesse pra me agredir. O Gustavo ficou de guarda sei lá quanto tempo, e de vez em quando vinha saber se eu ainda estava firme na posição. Na hora em que me dei por fatigado e dolorido, ele me ajudou a caminhar até o camarim da Bia, onde me recuperei e vesti roupa normal.
— Então a Beatrix até que foi bem legal com você! Nem sacrificou tanto quanto seria de esperar...
— Ela tem seu lado carinhoso. A história da Beatrix Danteska é um caso à parte e vale recordar. Enquanto esteve casada com um publicitário bem cotado, foi caseira e recatada. Quando descobriu que o cara era um dublê de marqueteiro e Torquemada, daqueles que de dia criam torturas e de noite torturam crias, a Bia se transfigurou. Ela me contou que lia minhas coisas meio escondido, pra que não pensassem que era uma tarada inveterada. Mal sabia que o marido praticava o que ela fantasiava! Depois da separação ela decidiu que só namoraria o macho que fosse capaz de humilhar sua fêmea mais duramente do que ela própria humilhava seus escravos.
— E ela encontrou esse prodígio da masculinidade contemporânea?
— Encontrou, mas da maneira mais curiosa. Primeiro ela se anunciou disposta a amestrar candidatos a escravo. De cada novato que aparecia ela exigia que, como parte do treinamento, ele se deixasse castigar pelo escravo anteriormente iniciado, e assim sucessivamente. Caso o calouro concordasse, seria descartado logo depois da sessão em que o veterano aplicasse o trote na frente dela. Caso o calouro se recusasse a receber trote de outro homem, entraria pra confraria dos amestrados. Depois ela começou a aceitar escravas, mas cada novata tinha que trotear um dos veteranos. Se o veterano se submetesse, também era descartado. Se a novata se recusasse a trotear, seria reprovada. Com esse jogo a Bia foi depurando seu curral, até que sobrassem só escravos "machistas" e escravas "feministas", por assim dizer. Então ela inverteu os papéis, fazendo dos rapazes dominadores das meninas. Quem não topasse estava fora. Acabou ficando só um casal, e a essa altura o cara tinha pegado o gosto de dominar e já não queria se submeter às vontades da Bia, só queria brincar com a escrava restante. Foi aí que a Bia deu o xeque-mate e perguntou ao rapaz qual das duas ele preferia escravizar. O cara se sentiu tão vaidoso com a tentação de conquistar maior superioridade, que escolheu ficar com a Bia.
— Caramba, que triagem complicada! E ela ainda está com esse vira-casaca?
— Não, porque até esse acabou fugindo com outra mestra. Ninguém é perfeito. Nem a própria Bia, que já me confessou ter experimentado na pele o chicote do tal assessor parlamentar... e este, por sua vez, não resistiu aos encantos da Condessa e já lambeu as botas dela pelo menos uma vez, segundo me revelou o Gustavo.
— Então não escapa ninguém! Quer dizer que não existe o sádico puro e o masoquista puro? Todo mundo é versátil e até eclético?
— Se alguém fosse puro, não seria sadomasoquista, seria santo. Falando nisso, até eu tirei minha casquinha lá no Santo Ofício...
— Tirou, Glauco? De quem?
— Do Gustavo. Ele me implorou de joelhos pra que eu deixasse chupar meu pau. Garanto a vocês que fazia tempo que um cego não gozava tão forte na boca dum olheiro...