GLAUCOMATOPÉIA [#56]


PROVAÇÃO E REPROVAÇÃO


SONETO 585


Não há nada pior que dor de corno
ao homem cuja esposa o trai no acinte.
Conheço caso assim: como um pedinte,
foi ele além do ponto de retorno.

Sabendo que ela o trata como adorno
supérfluo e descartável, um requinte
na mente do rival, que tem uns vinte
a menos, já desenha seu contorno:

Na frente da mulher, o cão devoto
recebe do moleque a imposição:
lamber o pó da bota que anda em moto!

De bruços, obedece, e outras lhe são
impostas pela amada que, na foto,
parece a mestra dando uma lição!


O soneto acima me veio quando um amigo hetero de longa data finalmente criou coragem para confidenciar-me seu único episódio homo, ou antes, bi. Claro que não revelo os verdadeiros nomes e só revelo os fatos porque, sob esta condição, ele me autorizou.

Tudo veio à tona durante uma visita que, ainda quando enxergava, fiz a seu estúdio de gravação, onde eram produzidos os discos de muitas bandas punks nos 80. Enquanto escolhíamos algumas fotos que ilustrariam meu próximo artigo sobre rock tribal, Marcão mostrou-me um álbum pessoal cujo destaque era uma figura feminina bastante provocante: loira, vestida de motoqueira e sorrindo com arrogância através dum batom vampiresco muito bem desenhado nos lábios desdenhosos.

— Rockeira inglesa? — perguntei, sem reconhecê-la entre as imitadoras de Beki Bondage, a célebre vocalista do Vice Squad.

— Que nada! Minha ex-namorada, a Vânia Mânia.

— Sério? Que gata, hem? Faz tempo que se separaram?

— Dois anos. Foi morar nos States. Ela adorava as HD e queria se juntar a uma gangue de "bikers". Não sei se conseguiu, mas levava jeito...

— Vocês tinham moto?

— Não. Quem me vê, com esse meu jeitão de Rambo, pensa que sou um Hell's Angel, mas não me equilibro nem na bicicleta. Foi por causa disso que ela me corneou.

— Como assim? Só porque você não sabia pilotar uma motoca?

— Uma coisa puxa outra. Fica entre nós, certo? Ela sempre me curtiu como homem e eu sei que satisfiz a feminilidade dela. Foi a mulher mais quente que já tive, e tenho certeza que fui o tipo de macho ideal que ela fantasiava. Só que aquele tesão por moto fez a Vânia conhecer um moleque bem mais novo, que trabalhava de boy na firma onde ela era funcionária. O cara dava carona pra ela e começou a freqüentar nossa casa. Quando percebi que ele estava muito à vontade, desconfiei e avisei a ela que não ia com a cara daquele folgado. Pra minha surpresa, ela respondeu que ia continuar andando com ele, mesmo que eu não concordasse.

— Ah, foi então que você mandou ela passear...

— Antes fosse! Teve bate-boca, quase saiu porrada, mas engoli o ciúme e fingi indiferença. Pra ver se ela tentava me reconquistar, fiz que não me importava e deixei que continuasse saindo com o motoboy, mas no fundo ainda achava que ela sentia tesão por mim e que não me trocaria por um pivete metido. Sei lá o que ela falou de mim pro cara, mas ele me olhava como se eu fosse o cachorrinho dela.

— Por que você não quebrou logo a cara dele? Já vi você perder a esportiva com gente mais barra-pesada por muito menos!

— Aí é que tá. Nunca levei desaforo nem transei com homem, você me conhece. Mas tenho que confessar que com ela minha relação era mais de mandado que de mandão. Eu me excitava quando ela me usava como objeto sexual e me programava como um robô, entende? Meu pau subia por controle remoto: era só ela empinar aquele narizinho e pôr a linguinha pra fora que nem serpente tentadora. Quanto mais garanhão eu ficava, mais ela me tratava como um cavalo domado, entende?

— Você chegou a servir de escravo? Tipo lamber bota, ficar de quatro...

— Cheguei. Mas ninguém tinha combinado nada. Ela sabia que podia mandar em mim na cama, mas não sabia quais eram meus limites. Estava a fim de testar. Quando saquei que ela e o motoboy estavam de acordo a fim de me sacanear, pensei na vingança, mas alguma coisa estranha me impediu de reagir.

— Um impulso masoquista? Se foi isso, não acho estranho...

— Você eu sei que não acha, mas em mim era uma tentação de experimentar coisa diferente. Comecei a reparar melhor na pinta do motoboy: o tal de Alê não passava dum magrela com boca de sapo e convencido que era o rei da selva só porque uma gostosa lhe dava bola. Achei aquele comportamento tão abusado que fiquei me imaginando rebaixado na frente dele. Não me pergunte o motivo, mas eu queria passar por aquilo, mesmo que fosse pra me vacinar duma vez por todas e nunca mais entrar numa arapuca igual. Queria ir até o fim pra saber até que ponto pode chegar um corno manso.

— Um corno amestrado, você quer dizer...

— Falou tudo. Foi uma espécie de teste de resistência pra mim. Um enduro.

— E o cara, sacava o seu conflito ou era babaca demais pra entender?

— Não sei. Nunca tive papo com ele, nem quis. Só encontrava com ele quando a Vânia estava junto. Uma noite eles chegaram em casa bem tarde, voltando do cinema. Eu quis dar uma de tolerante e, em vez de ficar na minha, vendo vídeo ou curtindo som no fone, como fazia sempre, resolvi beber e papear com eles, como se a coisa nem fosse comigo. Vânia aproveitou a deixa e levou o papo pro ponto crítico: mandou que eu servisse a bebida e preparasse um lanche pro Alê, que ele tava com fome. Ficaram os dois sentadões na sala e eu fui pra cozinha. Na hora me veio vontade de virar a mesa, mas ela falou com tamanha autoridade e ele me olhou rindo dum jeito tão cínico que levei uma espécie de choque elétrico e comecei a funcionar como um robô que tivesse sido ligado naquele momento. Da cozinha escutei o papo deles, as risadas, como se tudo já estivesse ensaiado. Servi os copos e pratos na mesinha de centro, enquanto a TV passava vídeos montados pela Vânia, clipes intercalando cenas de sexo, moto e rock numa colagem bem "hardcore". Imagine o quadro, Glauco: eu pondo as coisas no meio da mesa e eles apoiando os pés nas beiradas, cada um dum lado. Eu me abaixava pra servir e só via sola em volta... Você ia delirar, na certa!

— Que dúvida! Os dois estavam de bota?

— Só. A Vânia gostava de usar sempre e o Alê precisava usar por causa da moto.

— Eram muito diferentes, as dela e as dele?

— Totalmente. As dela eram de bico fino e salto alto, feitas de couro macio, e estavam sempre brilhando, até porque era eu que engraxava... As dele, muito maiores, eram pesadas e sujas, a sola quase tão grossa quanto a destes coturnos que estou calçando, olha só. Coisa reforçada, feita mesmo pra ralar.

— E você notou que eles puseram o pé na mesa de propósito pra humilhar?

— Pior: ficavam balançando a perna cruzada e conversando sem tomar conhecimento da minha presença, como se eu fosse um garçom de bar. Mesmo quando eu sentei no sofá pra participar do papo e do fumo, eles só me davam atenção na hora de mandar buscar alguma coisa a mais na cozinha. A Vânia começou a contar pra ele tudo que me mandava fazer, as coisas mais sujas, tipo lamber no chão o cuspe que ela escarrava e pisava em cima. Enquanto ela me desmoralizava e ele ria com cara de desprezo, eu ficava ali, sem graça, sem responder nada, sem moral pra desmentir cada vexame que ela detalhava pra satisfazer a curiosidade do moleque. De repente o Alê vira pra ela e pergunta: "Por que ele não aproveita pra tirar minha bota? Estou com o pé doendo de tanto ficar calçando isto o dia inteiro!" E ela simplesmente olhou pra mim e levantou o queixo, como quem diz: "Que está esperando?" Eu nem olhei pra cara dele. Passado de vergonha, mas vivendo uma emoção forte que nunca tinha provado, me ajoelhei e descalcei o cara.

— Aposto que o chulé era bravo.

— Do jeito que você imagina. Por isso é que não resisto a lhe contar o negócio todo.

— Não vai me dizer que você teve de lamber o pé dele...

— Infelizmente pra você, não recebi essa ordem. Mas a própria Vânia, assim que eu tirei as botas dele, mandou que eu tirasse também as meias e fizesse uma massagem igual à que eu fazia no pezinho dela. Ainda posso sentir aquele cheiro na minha mão, que parecia não sair nem no dia seguinte, com sabonete perfumado e tudo.

— Foi demorada essa massagem?

— Ah, acho que quase meia hora.

— E a reação dele durante a sessão?
— Ficou olhando pro teto, soprando a fumaça e apoiando a nuca no encosto da poltrona. De vez em quando trocava uma palavra com a Vânia, que assistia à tela, mas o silêncio daqueles minutos dava idéia de como ele relaxava, talvez planejando o final da noitada...

— Pelo jeito o programa ainda ia render...

— Mais pra eles que pra mim, lógico. Pra completar, ela fez ao Alê uma demonstração de como eu sabia lustrar uma bota com a língua. Vânia chegou a pisar num prato de fritas enquanto eu babava no cano alto daquela botinha preta de dominadora, Glauco! Adivinha se eu tive que abocanhar os farelinhos das batatinhas esmigalhadas pelo salto! Não deu tempo de massagear também o pé dela, porque o Alê queria tomar banho antes de ir pra cama.

— Pra cama? Que cama?

— A minha e da Vânia, claro. Ele se refestelou no quarto com ela e me trancaram no outro quarto, onde tinha uma cama pra hóspedes. Passei o resto da noite tentando escutar as vozes deles, os barulhos, mas só deu pra distinguir as risadas mais altas. Depois acabei me acalmando, quer dizer, depois que me punhetei e gozei de tanto remoer o que vi e o que devia estar rolando entre eles.

— Faço idéia! Mas você ainda conseguiu gozar, apesar de tudo?

— Gozei, e você nem adivinha como! Sabe o que a Vânia fez antes de me mandar pro quarto? Me entregou o par de botas do Alê e falou: "Leva isso e trata de engraxar bem engraxado. Amanhã de manhã o Alê quer ver esse couro brilhando, né, Alê?" E o cara já me dava as costas quando respondeu: "Brilhando que nem a sua vai ser difícil, mas ele que se vire, que rale a língua!"

— Brincou! Uma humilhação dessas é coisa que rola uma vez na vida e outra na morte! E que tal a sensação de lamber uma bota de motoqueiro?

— Pra mim o que machucou não foi a língua, foi saber que o dono da bota tava trepando com a Vânia enquanto eu lambia!

— Mas lambeu...

— Pra falar a verdade, não dava vontade, não: era muita poeira e muita zoeira prum cara como eu, que só tinha praticado essas coisas com a Vânia e entre quatro paredes. Mas pensei na bota dela, que lambi tantas vezes, pensei na submissão que podia ser a última, já que ela parecia estar decidida a me trocar pelo Alê, pensei em tragar o gosto daquilo até o fundo do copo. Só lhe digo uma coisa, Glauco: comecei a lamber com nojo, mas depois do primeiro orgasmo o trabalho virou uma rotina que atravessou a madrugada, com algumas pausas pra relaxar e me excitar de novo. De manhã minha porra e minha língua estavam secas, mas a bota nem parecia a mesma.

— Você cheirou por dentro do cano?

— Cheirei até a meia, que estava lá, encardida de suor.

— E depois? Como te trataram?

— Só vieram me destrancar depois que ela fez o café dele e já tinham levantado da mesa. O Alê estava usando meu chinelo e veio buscar as botas meio apressado, de olho no relógio. Vânia aproveitou pra tirar mais um sarro: "Que tal, Alê, ficou brilhando que nem a minha?" O sujeitinho examinou um pé de bota com cara de patrão exigente e desdenhou meu trabalho sem a menor cerimônia: "Tá reprovado. Tem muito que praticar pra merecer meu OK. Como massagista até que leva jeito, mas como engraxate precisa se esforçar mais..."

— Poxa, que esculacho! Você gastou sua saliva e o sujeito nem reconhece! — ironizei, assimilando a impressão que Marcão quisera me provocar — E você teve oportunidade de praticar mais?

— Mesmo que tivesse não praticaria! Aquilo foi dose. Vânia precipitou as coisas porque já tinha planos de ir embora do país. Nossa relação estava no limite, e só dava pra manter se eu virasse robô em tempo integral, coisa que nem de longe cabia na minha personalidade. Simplesmente deixei que ela fizesse as malas e nos despedimos numa boa.

— E o Alê? Que fim levou?

— Não sei direito, mas parece que está preso por tráfico.

— E a Vânia? Deixou saudade?

— Saudade todas deixam. Mas hoje só namoro mina submissa. Nada de me escravizar, elas é que têm de me servir. Agora estou com a Leila, que é uma verdadeira gueixa, mesmo sem ser oriental.

— Você tem cópia destas fotos da Vânia? Posso tirar uma?

— Pode levar esta. Que vai fazer com ela?

— Acho que vou pôr num quadro.

— Na sua galeria de sádicos ilustres? — brinca Marcão.

— Talvez na galeria de botas lustrosas... já que não temos foto da bota do Alê.

— Ah, mas essa bota da Vânia tem um desenho personalizado. A do Alê você vê no pé de qualquer motoqueiro, nem vale a pena fotografar...

É mesmo, pensei eu, a memória olfativa e gustativa marca mais que a memória visual.


GLAUCO MATTOSO
Poeta, letrista, ficcionista e humorista. Seus poemas, livros e canções podem ser visitados nos sítios oficiais:
http://sites.uol.com.br/glaucomattoso
http://sites.uol.com.br/formattoso

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