GLAUCOMATOPÉIA [#57]
PAPEL ANTI-HIGIÊNICO
SONETO 143
Se o orifício anal é um olho cego,
que pisca e vai fazendo vista grossa
a tudo que entra e sai, que entala ou roça,
três vezes cego sou. Que cruz carrego!
Porém não pela mão me prende o prego,
mas pela língua suja, que hoje coça
o cu dos outros, feito um limpa-fossa,
e as pregas, como esponja escrota, esfrego.
O "beijo negro" é o último degrau
desta degradação em que mergulho,
maior humilhação que chupar pau.
Sujeito-me com náusea, com engulho,
ao paladar fecal e ao cheiro mau,
e, junto com a merda, engulo o orgulho.
O soneto acima me veio na mesma noite em que, conversando com Carlos Carneiro Lobo, a monotonia dos contos eróticos foi a pauta central. Comentávamos que, no caso da literatura gay, sempre houve pouca vanguarda e muita retaguarda, e o magistral ficcionista de HISTÓRIAS MAL CONTADAS, que costumeiramente me visitava, expunha então sua própria teoria a respeito: a arquetípica estrutura narrativa na base do começo-meio-e-fim, contestável ou não, fica reduzida, no homoerotismo, à mera seqüência ereção-penetração-ejaculação, que, já pouco criativa por si mesma, resulta ainda mais burocrática por estar presa a falsos clichês como o mito do pau grande e o vício do coito anal. "Parece (dizia ele naquela noite) que os gays não conseguem escapar do círculo vicioso entre a felação ativa e a sodomia passiva... e quando escapam limitam-se a inverter os termos do dilema, comendo o cu e deixando-se foder na boca. A reciprocidade, em qualquer caso, só confirma a falta de escapatória."
Tem razão, Carlos. Qualquer mexida nas peças bagunça o tabuleiro dessas cabecinhas primárias. Veja, por exemplo, como é difícil pro contista gay trabalhar com a posição boca-no-cu. Na idéia dele o ato anilingual, quando ocorre, só serve pra lubrificar o cu que vai ser fatalmente enrabado. Não se enfatiza o cunete com a carga psicológica que caberia nessa comunhão tão delicada...
Bem lembrado. Sei dum caso que ilustra perfeitamente essa carga que você acha importante.
Isso me interessa. Quer contar?
Pode ser. O novelo não tem nada de enrolado. Numa ponta está um deficiente físico, na mesma situação em que você ficou. Não falo da cegueira, mas da inferioridade. O cara é cadeirante, amputado nas duas pernas e na mão esquerda.
Que coincidência! Ontem mesmo estive lendo o testemunho dum cadeirante americano que tirei daquele sítio de gays deficientes... Está salvo aqui, vou mostrar.
Aproveitei que o computador falante estava ligado e saí da pasta onde arquivo meus poemas para entrar na dos depoimentos sobre sexo oral. Localizei um relato publicado no www.bentvoices.org do qual Carlos leu na tela os seguintes trechos:
"When I became a wheelchair user years ago, after a drinking and driving accident, I had no idea how drastically my life would change. I had once been a cutie, but now I was sitting in a chair. How could I still be attractive to other men? While trying to figure out the answer to that question, I discovered that people can and do make me feel like a second-class citizen by the way they treat me, talk to me, stare at me. I am tired of people talking to me like I'm stupid. They see me using a wheelchair and automatically start speaking slowly and clearly. I'm a crip, not an idiot! If I live to be 100 years old it will never cease to amaze me how many stupid fuckin' people there are in this world. I live an independent life. I work. I play. I clean my house. I shop for food. And I live alone. Despite all that, too many people see me as less-than-a-whole person -- someone who will require nothing but caretaking. I try to dispel myths like that by example, by commanding respect wherever I go. I'm a powerful man and I'm diligent about maintaining the power I get. But there's one time when I feel more powerful than others. Let me explain. I'm very much into anonymous Sex. Sure, some people will criticize, but I don't give a shit. I'm a big boy and I do what I want. I always play it safe so there's not much I need to worry about. My specialty is cocksucking. That's right. I'm an expert. There's nobody better and I have the letters of recommendation to prove it! My friends call me 'whore,' 'slut,' and a bunch of other names, but I just write it off as jealousy, pure jealousy. [...] I do it better than anybody. My mouth is made for cock. While any size will do, the bigger the better. For me, there's no better feeling than having my mouth crammed with somebody's big dick. I use my mouth unlike anyone else. When I apply a certain pressure, devote my attention to a certain spot, well, I can make a man blow his load in record time. My disability has prompted me to perfect my technique. In the past I could spend hours kneeling at a glory hole. Now I have to sit to give it all my attention and concentration. And when you suck cock you've got to concentrate if you want to be the best. Now what's this power I speak of? Well, let me just tell you. Take a big, strapping guy — a guy you wouldn't want to meet in the proverbial dark alley if he was intent on ripping you off. But put this same guy in a sex club or my house with his dick in my mouth and he becomes a babbling, moaning baby — defenseless and vulnerable, just the way I want him. I find it amazing that someone with such strength can become a 'husk of his former self' just by inserting one particular body part (a BIG part, I hope) in my mouth. [seguia-se uma série de situações nas quais o cadeirante compensava a deficiência com sua habilidade na felação, gabando-se de ter feito com que os machões mais abrutalhados gozassem em sua boca e, totalmente relaxados, revelassem fragilidade] So now you see how it works. When society makes me feel weak and powerless, I suck dick! There's no better way to boost my self-esteem."
Ah, Glauco, o caso dele é bem diferente. Esses "freaks" americanos têm sua auto-estima bem incentivada. Por aqui o buraco é mais em baixo. O cadeirante que conheço não é masoca declarado como você, mas passou por humilhação que você talvez não encarasse...
Será?
Veja só: o sujeito é jovem, ainda tá no vigor dos trinta. Vou chamar o cara de Aleixo. Sempre se considerou gay, mas pros amigos gays dizia ser bi e pra família aparecia até com namorada, daquelas que estão mais pra noiva que pra esposa. Na família era ele o único com curso superior, algum desses diplomas na área empresarial, mas que não lhe dava a função de alto executivo que ele ambicionava. Mesmo assim tinha emprego melhor que o das duas irmãs mais novas e que o do pai, metalúrgico quase aposentado. Antes de se acidentarem, viviam todos na mesma casa no ABC paulista. Depois do acidente só ele sobreviveu.
Que acidente?
De ônibus. Desciam pra praia num feriadão e o motorista perdeu o freio numa curva da Anchieta. O despenhadeiro nem era tão fundo, mas pouca gente se salvou, alguns bem mutilados. Aleixo teve sorte de perder só as duas pernas e metade dum braço, mas depois achou que foi azar não ter ido com os outros. Custou a se recuperar. Caiu na deprê, ficou sem namorada, saiu da firma onde trabalhava e não pôde bancar o aluguel da casa. Acabou tendo que morar de favor na casa duns primos. Favor é modo de dizer, porque pouco tempo antes eram esses primos que estavam na pior, desempregados e doentes, e tinha sido a família de Aleixo quem socorreu os dois, com remédios comprados pelo próprio Aleixo, fora outras despesas, tipo diária de hospital, contas atrasadas e até o arroz com feijão, já que ali era todo mundo adulto e o leite das crianças não fazia parte do planejamento familiar... O fato é que Aleixo arcou com o ônus de cabeça erguida, nariz pro alto e o ego lá em cima.
Quanto provérbio! A desgraça pouca, o mundo dando voltas, uma mão lavando a outra...
Mas também teve cuspida no prato. Os gêmeos Valdir e Valmir (vamos chamar assim) dividiam um sobradinho em Osasco. Valmir e sua companheira já tinham arrumado serviço. Valdir continuava solteiro e desocupado, pensando só em musculação e artes marciais. Imagine o conflito de brios e melindres, Glauco: enquanto era saudável e qualificado, Aleixo até se orgulhava de sustentar a maior parte do orçamento doméstico e ainda dava lição de moral socorrendo os primos "irresponsáveis". De repente, se vê na dependência duma retribuição... que no começo foi espontânea, mas logo acabou gerando atritos. Aleixo se julgava tão incapacitado que depositou as últimas reservas financeiras na mão dos primos, deu procuração pra cuidarem de seus direitos, mas ao mesmo tempo acreditava ter ainda alguma autoridade pra cobrar deles mais "juízo", particularmente do Valdir, que tinha recebido a maior parcela de auxílio e devia, na opinião do acidentado, "reconhecer" a generosidade e "corresponder" com igual dedicação. Não demorou pra que a roupa suja fosse lavada em bate-bocas cada vez mais freqüentes, principalmente entre Aleixo e Valdir, já que o casal passava quase todo o tempo fora. Um jogava na cara do outro os respectivos podres, Aleixo xingando o primo de "ingrato", "vagabundo" e "aproveitador", Valdir apelando pra ignorância e chamando o cadeirante de "inválido", "inútil" e... (tava demorando) "viadão escroto" ou "bichona de merda"...
Claro, na hora da baixaria, nada como comprometer a honra do macho.
Exato. Aleixo sabia que os familiares e parentes sempre desconfiaram, mas nunca admitiu que um dia alguém fosse tocar no assunto, porque, afinal de contas, sempre deu exemplo de rapaz certinho. Como é que, de repente, vem um mal-agradecido sem-vergonha desrespeitar sua "desabilidade" e ainda por cima sua sexualidade? O pior é que, até o momento da discussão mais acirrada, era justamente o Valdir quem dava assistência a Aleixo dentro de casa, já que este quase nem saía. Como não podia subir escada, o deficiente dormia na edícula do quintal e só se locomovia da sala pra cozinha e dali pro quartinho ou pra privada ao lado. Uma vez por dia, Valdir carregava o primo nas costas até o andar de cima, onde ficava o banheiro que tinha box, e ali Aleixo se lavava. Depois era de novo carregado até o térreo e voltava pra cadeira de rodas ou pro sofá. No dia do rompante a coisa começou bem na hora em que Aleixo saía do banho. Como demorava pra se enxugar, Valdir entrou no banheiro sem bater na porta e mandou que ele se apressasse, pois não ia ficar o resto do dia à disposição dum peso-morto. Ah, pra quê! Aleixo jogou os cachorros pra cima do primo e levou na cara o famoso "viadinho de merda" que desencadeou as vias de fato. Aleixo tentou ofender no mesmo nível: "Você é que é um bosta! Ao menos eu limpo meu cu sozinho! Você não limpa o seu porque não quer, porco nojento!" Valdir deu o troco: "Não limpo mesmo! E daí? Não limpo e faço você limpar, se eu quiser, seu chupa-rola!" "Ah, faz? Então faça! Quero ver sua valentia, seu cagão!" Aleixo duvidava que o outro fosse capaz de passar dos limites da violência verbal, mas Valdir pôs pra fora todos os demônios e partiu pra cima dele. Aleixo foi jogado de bruços no chão e teve o braço torcido até o ponto máximo da dor e mínimo do amor-próprio. Foi tão fácil pro Valdir quebrar a resistência dum cara corpulento mas indefeso, que ele até esqueceu a raiva pra achar graça nos gritos do coitado. "E agora? Tá vendo quem manda aqui?" E forçava o braço torcido pra provocar mais gemidos e pedidos de "Pelo amor de Deus!"... Foi então que o corpo nu do mutilado despertou os baixos instintos que Valdir guardava em segredo e só liberava nas punhetas. "Seu viado de merda! Quero ver você engolir tudo que falou! Vou jogar você da escada! Vai quebrar a espinha e ficar paralítico duma vez!" E reforçava as ameaças com puxões e empurrões, sem soltar o braço torturado. "Não vou mais carregar nenhum esquartejado pra cima e pra baixo! Você vai ter que rastejar! Eu vou ficar só olhando e rindo!" Aleixo continuava implorando e a empolgação de Valdir aumentando. "Então? Vai limpar meu cu ou não vai?" "Pára! Me solta!" "Vai limpar? Não responde?" "Eu limpo! Me larga!" "Mas vai limpar com a língua! Não vai?" "Isso não! Ai! Pára! Eu limpo, eu limpo!" "Com a língua?" "Limpo!" "E depois inda vai pedir pra chupar minha rola, não vai, seu boca de penico?" Desta vez a resposta de Aleixo saiu menos relutante: "Vou! Eu chupo, eu faço o que você quiser, mas me deixa senão meu braço vai... Ai!" Valdir deu trégua e Aleixo virou de cara pra cima, lacrimejando de dor. Antes que recobrasse as forças, Valdir tinha arriado as calças e se acocorava sobre aquele rosto assustado, encaixando o rego entre o nariz e o queixo do deficiente. Mesmo sem estar imobilizado, Aleixo já não oferecia resistência, fosse porque sabia que o primo era capaz de cumprir o que ameaçava, fosse porque seu jejum de sexo já durava meses. A primeira reação foi de náusea, mas o cheiro não era tão fecal quanto Aleixo imaginava, e a língua começou a explorar a abertura que ia se afrouxando, se alargando, até que um bafo quente invadiu as narinas do derrotado com fedor sufocante. Valdir forçou outros peidos, mas os estalos já não foram acompanhados de muito gás. "Anda, continua!" E a língua recomeçava a faxina, esquadrinhando cada dobra em busca daquilo que o papel higiênico não tivesse encontrado, vasculhando cada pelinho em volta à procura da badalhoca que, feliz ou infelizmente, não estava ali. Na posição em que tinha se agachado, com o saco na testa de Aleixo, o vencedor não podia ver como o pau do vencido dava pulos e se remexia tanto quanto os cotos das pernas, ao contrário do braço dolorido, que repousava no ladrilho frio do banheiro. É verdade que, ao carregar o primo nas costas, Valdir tinha percebido que a mutilação não interferia nas funções sexuais do membro que parecia se avolumar, mas sempre fingiu não ter notado o constrangedor detalhe anatômico. Agora, excitado pelo contato macio da língua, mais macio que o do seu próprio dedo, Valdir se deixou escorregar pra trás de modo que seu saco fosse também lambido, e em seguida o pau. Não foi preciso que Aleixo recebesse a ordem de chupar. Quando a língua deslizou até alcançar a cabeça, o resto foi automático, e Valdir ficou só observando aquele marmanjo musculoso a mamar feito um bebê chorão, sem resistir nem reclamar, fazendo esforço pra levantar a cabeça e poder abocanhar mais fundo. Ia atirar algumas outras palavras humilhantes nas fuças do castigado, mas a cena já era bastante pra satisfazer qualquer gostinho de tripudiar, e Valdir se deu ao luxo de apreciar os movimentos da cabeça fodida enquanto o pau bombava, sem pressa, pra não acabar logo, pra prolongar o sabor da vitória e prelibar um futuro de superioridade e deleite. Sim, porque Valdir já se dava conta de que aquilo era apenas o começo duma nova fase e que a mamata iria durar pelo menos até quando Valmir também cobrasse mais responsabilidade e ele tivesse que se definir, arranjando trampo e juntando os trapos com sua própria companheira, coisa que não podia tardar... Não vou dizer que este cadeirante virou um felador tão habilidoso quanto aquele americano. Mas que aprendeu a chupar do jeito que Valdir gostava, aprendeu. Mesmo porque já tinha alguma, digamos, experiência anterior. Agora, o que esse cara desempenhou mesmo, até ganhar prática, foi o papel do papel...
Sem asco nem fiasco, eu diria. Mas como você ficou sabendo disso tudo?
Digamos que eu sei perguntar... e digamos que a cunhada do Valdir é minha funcionária.
No sebo?
Pois é. Contratei a moça ano passado, e tá se saindo bem. Adora ler, principalmente aqueles clássicos pornôs que eu vendo como raridades. Conversa vai, conversa vem, ela me confidenciou esse caso e alguns outros, que já aproveitei como matéria-prima pro meu livro.
E quem contou pra ela? O marido ou o cunhado?
O cunhado. Hoje em dia ela tem mais intimidade com o Valdir que com o Valmir...
Entendo. Basta a meia palavra. Mas me diga uma coisa: por que você ainda não usou este caso num conto?
Deixo pra você. Esse departamento homo não é bem o meu, você sabe.
Então você fica com os adultérios das cunhadas que eu fico com as bissexualidades dos primos. Combinado?
Carlos deu uma gargalhada gostosa e desliguei o computador. Assim que ele se despediu, corri à privada para aliviar o intestino. Enquanto evacuava, fiz de conta que cada tolete que passava pelo esfíncter equivalia a uma lambida. O teatro funcionou e meu pau aplaudiu de pé.