GLAUCOMATOPÉIA [#58]

DOMINAÇÃO NO CONDOMÍNIO


SONETO 817


Meu prédio já viu coisa que parece
por mim mesmo inventada, mas é sério:
enquanto inda enxergava, vi o império
do sarro e do sadismo entre quem cresce.

Meninos inda são. Antes que ingresse
em plena adolescência, a um deles fere-o
um outro, que o domina. Sem critério,
na mão de toda a turma ele padece.

Assim aconteceu: o recém-vindo,
por ser único filho, e sem ter pai,
também hostilizado é por ser lindo.

De início, um dos vizinhos logo o atrai
a qualquer canto oculto e o vai despindo
na marra. Reagiu, ferido sai.


SONETO 818

Após sodomizado, chupa e aprende
que gosto tem um sujo pau. Não tarda,
está chupando os outros. Se acovarda
e nunca os denuncia: já depende.

Aos poucos, quando apanha nem se ofende,
achando-se inferior como a cor parda
do belo rosto usado: a retaguarda
já não é guloseima que mais vende.

Lhe cospem, gozam, mijam boca abaixo...
Fiquei sabendo disso por boato:
talvez quem conta saiba onde me encaixo.

Senti-me como a vítima: o sapato
lambido é só o que falta. O resto enfaixo
no rótulo dos traumas que relato.


Os dois sonetos acima me vieram quando o zelador do meu prédio, ao cruzar comigo no saguão, disse ter revisto na rua o tal Rolando, já nos seus vinte e poucos, andando de esqueite como se ainda estivesse nos treze e fumando como se fosse adulto. Rolando não morou neste condomínio, mas foi o garoto mais famoso do quarteirão, e todos os zeladores, porteiros e vizinhos o conheciam. A fama é que não era nada boa: aprontou com crianças e adultos. Seus próprios pais, ao que se sabe, preferiam fazer de conta que o diabrete era um anjo a ter de enquadrá-lo, e simplesmente ignoravam quaisquer reclamações. Não sei se houve alguma ocorrência policial, mas imagino que a conduta do moleque deu bons motivos para tanto.

Na época, quem me contou foi um amigo que morava no mesmo prédio de Rolando. Havia já certo tempo que Diego (o referido amigo) vinha atentando para as tendências sádicas do menino, as quais, somadas ao natural espírito de liderança, faziam dele ídolo da turminha na faixa dos onze a doze. Outro moleque se destacava nessa gangue: Nelinho, fosse pelo porte físico mais avantajado que a média (dando-lhe aparência de maior idade), fosse pela sexualidade indomável que escoiceava num corpo quase adulto atropelando a mentalidade infantil, fosse pelo sadismo comparável ao de Rolando. Nelinho só não era líder porque lhe faltava a inteligência: estava, digamos, mais atrasadinho nos estudos que seu coleguinha de travessuras.

Foi quando veio morar ali uma família de angolanos refugiados da violência das guerrilhas africanas. Família acéfala, já que o pai morrera por lá, vítima dalguma mina terrestre. Só a mãe e o casal de filhos habitavam o apartamento de três quartos, cujo aluguel era pago sabe-se lá como e por quem. A menina, gordinha e esperta, era quem tomava conta do irmão, embora este tivesse um ano a mais que ela. Acontece que o menino, muito dócil e ingênuo, caiu logo na mira da gangue de Rolando e, quando a irmã não estava por perto para estrilar e pedir socorro à mãe ou a qualquer adulto, Noel acabava levado pelos capetas a algum canto, onde o "zoavam" à vontade.

Coisa que pouca gente sabia: Rolando se encarniçou no sadismo incitado pelo irmão mais velho, então beirando os dezoito e prestes a ingressar na faculdade de medicina. Certa vez, Diego vinha entrando no edifício quando, ao transpor o portão, avistou, no topo da escada de acesso à portaria, dois garotos atracados no chão, como se brincassem de lutar. Ao lado, em pé, o irmão de Rolando apenas observava. Diego não deu importância à cena banal entre crianças, mas notou que o rapaz mais velho instruía os garotos e, ao ver que Diego subia os degraus, afastou-se e saiu, deixando os menores brincarem livremente. Ao passar por eles, Diego ouviu a pergunta de Rolando dirigida a Noel, que, de quatro, deixava-se cavalgar pelo mais forte:

— Então? Vai ser meu escravo?

— Não! — gemia o negrinho, mas continuava debaixo das pernas de Rolando, sem esboçar reação física.

— Ah, vai sim! Vai ser meu escravo! — e Rolando chamava a atenção do porteiro que, de dentro da cabine, assistia à cena sem ousar intervir, quem sabe até curtindo o espetáculo:

— Olha só, Mané, olha só quem virou meu cavalo!

Diego, que já se encaminhava para o saguão do elevador, não resistiu à curiosidade e voltou-se a tempo de presenciar a prostração de Noel diante dos pés de Rolando, que lhe ordenava:

— Beija o chão! Agora beija meu tênis! Isso!

Para não cortar o barato dos meninos, Diego fingiu que esperava o elevador sem prestar atenção ao jogo, mas Rolando, empolgado pela emoção da nova brincadeira, arrastou Noel para o pátio de trás e ambos perderam-se de vista.

Algum tempo depois, Diego comprovou que Noel se convertera em gato e sapato de toda a galera. A gorducha, que finalmente encontrara suas próprias amiguinhas, desistiu de bancar a guarda-costas do pobre maninho, e já não se lhe ouviam os berros cada vez que Rolando e seus capangas se acercavam de Noel com o fatal risinho maquiavélico a sinalizar novas humilhações, além das habituais ordens para ajoelhar, rastejar, deixar-se pisar no rosto e servir de capacho, descalçar tênis com a boca, imitar bichos domésticos e selvagens. Passo a palavra a Diego para que ele mesmo relate:

"Duas coisas, Glauco, de que não tenho dúvida: a molecada pegou o negrinho pra Cristo não só por causa da cor (mais comum nos filhos de faxineiras que de inquilinas), mas principalmente por ser forasteiro e órfão de pai; de sua parte, Noel não oferecia resistência não só porque Rolando estivesse enturmado, mas também porque o algoz tinha cobertura do irmão 'instrutor', o qual maquinava o jogo e ficava de camarote.

Uma vez eu lia no jardim quando, no banco ao lado, sentou-se o instrutor e, na grama, rolavam Rolando e Noel. Sem se importar com minha presença (ou até fazendo questão que eu presenciasse), o instrutor advertia Noel
para que se deixasse cavalgar por Rolando, ou seria pior. Assim que o cavaleiro trepava às costas do quadrúpede, o próprio instrutor comentava:

— Xi, ele montou! E agora?

A leitura da frase não podia ser mais irônica: Por que será que o bobinho não revida? Por medo ou porque reconhece a inferioridade?

Meses mais tarde, a coisa já amadurecia. Do meu habitual ponto de observação, onde eu fingia estar concentrado no livro, acompanhei o trote que, sob as vistas do instrutor, toda a gangue aplicava em Noel. Molharam-no inteiro, jogaram farinha por cima, obrigaram-no a assobiar o hino nacional marchando de joelhos. Nelinho, radiante de alegria, ria até não poder mais e, virando para o instrutor, sugeria:

— Faz ele chupar seu pau!

— Faz você! — ria de volta o manão de Rolando.

— Ah, eu faço mesmo!

Não fizeram ali, à vista de quem passasse, mas fiquei sabendo que fizeram no topo do prédio, entre os muros que cercavam o terraço da laje superior, um esconderijo ao qual só tinha acesso quem fazia manutenção de instalações hidráulicas, mas cuja porta Rolando dera jeito de abrir. Parece que freqüentavam o antro com regularidade, a julgar pela profusão de pichações e pelo cheiro de maconha que vazava para as escadarias do bloco. Aliás, a molecada adorava descer pela escada, sempre em desabalada carreira e tocando todas as campainhas dos apartamentos, isso
quando não se optava por apostar corrida entre o elevador social e o de serviço, a segunda e divertida alternativa.

No ano seguinte, o irmão de Rolando foi estudar no interior e a família de Noel se mudou para o Rio. Nosso sossego não aumentou com a ausência do mentor e do escravo, pois Rolando e Nelinho continuavam vandalizando nas áreas comuns e fazendo lenda nas redondezas. Mas a partir de então eu parei de ouvir, de dentro da minha sala, a voz estridente de Nelinho a chamar, lá de baixo, até que Noel aparecesse na janela, alguns andares acima do meu:

— Noel! Desce aqui! Já! É uma ordem!

Certa tarde, quando eu lia com mais tranqüilidade naquele recanto ajardinado, vejo Rolando cercado pelos amiguinhos, mostrando-lhes a carta que acabava de abrir.

— É do Noel! — gabava-se Rolando.

— Ele escreveu pra você? — admirava-se Nelinho.

— Ah, mas é só pra mim! Não deixo ninguém ler!

E correu para casa, enquanto os companheiros trocavam sorrisos de curiosidade. Matutei comigo sobre quais insondáveis motivos levariam o negrinho a manter correspondência com seu carrasco, um gesto tanto mais inusitado quando sabemos da ojeriza que moleques dessa idade têm ao texto escrito e ao hábito da leitura. A carta era, evidentemente, um troféu para a vaidade de Rolando, mas até que ponto chegaram as relações de Noel com ele era o que me intrigava. Algum esclarecimento só obtive depois que o próprio Rolando se mudou, com os pais, para outro bairro. Nelinho, que parecia ter ficado mais bobão sem a companhia do ídolo, amansou seu ímpeto predador à medida que assumia contornos de marmanjo balofo, e aos poucos fui me aproximando dele no papo. Um dia peguei-o de jeito e interroguei-o longamente. O diálogo rolou mais ou menos como vai abaixo.

— Ué, cadê a molecada? Não vejo mais vocês aprontando... Só porque o Rolando mudou você ficou mais quieto?

— Ah, antes era mais gostoso!

— Por quê? Tinha mais escravo pra ser zoado?

— Ah, se tinha! Tinha o Noel... o Serginho... o Cacá... mas todo mundo tá mudando!

— Mas quem era mais gostoso de zoar?

— Ah, o Noel, claro!

— Por quê?

— Ele obedecia tudo, sem chiar. Os outros só queriam escapar, a gente tinha que ficar segurando na marra.

— Segurar pra quê?

— Várias coisas... cuspida na cara, dentro da boca... uns tapas... uns chutes...

— Que mais?

— Uns boquetes... de vez em quando.

—Todos eles tinham que pagar boquete?

— Não, boquete só o Noel pagava. Primeiro pagava pro Rolando, depois o Rolando me emprestava o escravo e eu tirava minha casquinha...

— Emprestava só pra você?

— Só. Ele achava que era dono do Noel, mas pra mim ele emprestava porque gostava de ver o Noel me chupando.

— No apê de quem?

— De ninguém. A gente ia lá pro terraço, quando dava.

— Nunca pegaram vocês?

— Não dava tempo. Se viesse alguém a gente parava. Só podiam mandar a gente descer de lá.

— Mas e se não aparecesse ninguém pra atrapalhar? Que acontecia?

— Ah, aí a gente tirava um sarro legal. O Noel tinha que chupar o Rolando até ele gozar. Depois era minha vez.

— E o Noel chupava direitinho?

— Tinha que chupar. No começo ele enjoava com a pica do Rolando, mas foi acostumando e já engolia quase inteira.

— E com a sua, ele acostumou?

— Demorou mais, porque a minha é maior... não cabe toda. Eu fazia ele lamber bastante, depois ele tinha que me punhetar enquanto eu metia a cabeça até onde dava.

— Ele agüentava numa boa?

— Não, mas a gente não dava moleza. Enquanto não fizesse o que a gente mandava, não podia se livrar. Eu catava ele pela orelha e metia bronca.

— E a porra? Ele engolia?

— Ele que experimentasse não engolir! Até mijo ele teve que engolir!

— Quem mijou? O Rolando?

— Eu que tive a idéia, mas acho que ele bebeu o mijo do Rolando quando ficavam sozinhos.

— E o Rolando? Preferia ficar sozinho com ele ou gostava mais quando você estava olhando?

— Acho que gostava igual. Tudo era legal. Eu também peguei o Noel sozinho, mas o Rolando não sabia, senão não deixava...

— Ele queria ser o dono do Noel?

—É, ele achava que o Noel era escravo particular dele, e só emprestava quando queria assistir o carinha me chupando.

— Por que você acha que ele gostava de assistir?

— Ele falava que queria ver se minha rola ia caber na boca do Noel. Uma vez ele mediu até onde entrou.

— E entrou até onde?

— Ah, até a metade...

— E depois que o Noel mudou? Quem ficou chupando vocês no lugar dele?

— Ninguém. Mas aí a gente ficou conhecendo aquelas minas do cortiço... Aí virou festa!

— Quer dizer então que o Noel faz alguma falta...

— Fez mais pro Rolando. O pau do Rolando ele mamava com gosto, mesmo. Parece até que o cara nasceu pra ser escravo, e que o Rolando só queria gozar na boca dele. Era que nem um tênis, tem que ser nosso número, senão não serve, né?

— E as meninas? Chupam bem que nem o Noel?

— Nem todas. A maioria tem nojo, não gosta do cheiro, fala que tem sebinho... um saco! Mas como elas têm buraco até de sobra, a gente goza, dum jeito ou de outro...

— Mas boquete igual ao do Noel...

— Ah, é difícil! O Rolando falava que só bicha velha é capaz de chupar assim...

— Bicha velha? Da minha idade?

A resposta à última questão é um segredo que fica entre mim e Nelinho..."

Diego saiu-se bem, mas fico me perguntando por onde anda Rolando, e como rola sua rola... Quanto a Noel, o que eu queria era ter o "emeio" dele pra fazer minhas próprias perguntas acerca do pé de Rolando, que suponho ser chato e ter chulé, e cujo dedão imagino mais curto, até um centímetro a menos que o artelho vizinho...

GLAUCO MATTOSO
Poeta, letrista, ficcionista e humorista. Seus poemas, livros e canções podem ser visitados nos sítios oficiais:

http://sites.uol.com.br/glaucomattoso

http://sites.uol.com.br/formattoso
 

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