GLAUCOMATOPÉIA [#59]
DIALÉTICA DIURÉTICA
SONETO 511
Cascudo estuda o jus da caatinga
e diz que um cabra macho ingere urina
dum outro inda mais macho que o domina
ou mesmo do oprimido que se vinga.
"Vem cá tomar meu mijo!", diz quem xinga.
Defende-se o ofendido, que assassina
ou cede a boca à guisa de latrina.
Mais fede a fama suja que a catinga.
Há casos em que a língua se projeta
na marra, lambe a glande, apara o jato
que calha feito esgoto em calha abjeta.
O líquido goteja do meato,
missão duma micção que se completa.
Que mais pôr num bispote tão barato?
O soneto acima me veio quando reexaminei alguns textos sadomasoquistas acerca daquilo que se convencionou chamar de "golden shower", ou seja, a urolagnia como foco central do jogo escravizador — textos cuja contrapartida verídica encontra embasamento em sérios estudos acadêmicos, a começar pela antropologia e pelo folclore. Torturas escatológicas têm desfilado com garbo ao longo da história bélica da humanidade, como tempero a apimentar o cardápio de requintes de crueldade entre vencedores e vencidos. Já referi em prosa e verso a tradição nordestina, documentada até por Câmara Cascudo, como demonstração de poder do opressor que obriga o oprimido a beber-lhe a urina.
Após ter lido no meu sítio vários sonetos como este, um ex-boleiro de várzea a quem fui apresentado contou-me seu caso. O papo que levamos vai reportado com a maior fidelidade possível numa versão escrita:
— Então você curte poesia?
— Nem toda. A sua eu curto por causa dessa baixaria escancarada.
— Você disse que certos temas lhe interessam mais de perto. Sua experiência tem a ver com eles?
— Vivi uma situação de quem leva a melhor... Quer dizer, quem mijou fui eu.
— Ah, é? E quem foi mijado?
— Meu padrasto. Foi assim: eu tinha dezesseis quando meu pai morreu. Éramos muito apegados, eu e o velho. Ele me incentivou a jogar bola na mesma posição dele, zagueiro.
— Ele morreu de quê?
— Assassinado. Ajuste de contas por causa de droga, foi o que falaram. Mamãe e eu também estávamos jurados, por isso ela se mudou pra cá. Acabou casando de novo, com um cara divorciado, dono de lotérica, sujeito metido a comer sardinha e arrotar caviar.
— Sua mãe ainda está com ele?
— Está. Eu é que saí fora. Pra ela a vida melhorou quando conheceu o Clóvis, mas pra mim foi uma fase de maior revolta. É verdade que eu já era revoltado contra tudo e naquela idade a gente quer que o mundo se foda. Mas o Clóvis queria ser mais severo comigo do que meu pai tinha sido e, quanto mais ele me cobrava uma ocupação ou um diploma, mais vagabundo eu ia ficando. Parei de estudar e, quando não estava jogando bola, estava dormindo ou lendo gibi.
— Sua mãe ficava mais do lado de quem?
— Dele, mas não por vontade própria. Ela se sentia uma escrava sexual do cara. Não ia me contar, mas sei que ele tratava a coitada como puta na cama e como empregada na cozinha. Ela se sujeitava porque não queria perder a vaga, mas acho que até gostava de ficar por baixo. Acontece que eu só podia ficar com mais bronca dele por causa disso, né?
— Você chegou a ter algum atrito mais sério com ele?
— Não, porque também não estava preparado pra ganhar a vida sozinho. Enquanto o ano se arrastava, fui levando e, quando ele ameaçava me expulsar, mamãe acalmava a crise, mas o preço dessas negociações era mais submissão dela às vontades do patrão. Resumindo: eu me sentia tão impotente que a única desforra era vadiar descaradamente. Fiquei tão inútil que nem descarga na privada eu dava. Tênis, meia, cueca, tudo eu largava no lugar onde tirava. Quando mamãe percebia, tratava de recolher antes que o Clóvis visse, mas, se ele flagrava primeiro, era aquela chiadeira: "Será possível? Esse moleque continua desleixado! Vai ver a zona que ele deixou no banheiro! Aquele tênis fede que nem carniça! Aquela meia já tá podre! E ele ainda larga jogada pelo chão! Assim não dá!" No meu quarto ele nem entrava, porque já sabia que ali era meu mando de campo e só se podia esperar bagunça. Já o banheiro era campo neutro e cada um catimbava em toda bola dividida, pra usar uma figura do futebol...
— Você acha que era relaxado assim de propósito ou pela displicência natural da idade?
— As duas coisas. Quando me toquei que aquilo irritava o Clóvis, passei a provocar as cenas. A maior implicância dele era com a privada fedendo. Eu ia mijar e já ficava imaginando a cara de raiva dele quando entrasse no banheiro e sentisse o cheiro. Não dava outra: ele saía espumando que nem minha mijada, me chamando de porco pra baixo.
— Sua mãe não conseguia vigiar você pra evitar esses flagras?
— Ela tinha muitas ocupações, precisava até ajudar no balcão da lotérica. Foi numa dessas visitinhas dele ao banheiro que a coisa teve
uma reviravolta. Dessa vez fui eu que flagrei o Clóvis.
— Como assim?
— Ele pensou que eu não estava em casa, mas eu tinha ido procurar uns gibis velhos empilhados na área de serviço. Ali fiquei distraído, relendo aquelas relíquias, quando escutei a voz do Clóvis resmungando: "Moleque filho da puta!" A janelinha do banheiro dava pra área, e sem fazer barulho espiei pelo vitral aberto. Não é que o Clóvis tava ajoelhado na frente da privada?
— Não vai dizer que ele batia punheta!
— Na hora não deu pra ver, mas a cara dele quase encostava no meu mijo. Ele respirava fundo e ficava repetindo: "Moleque sem-vergonha! Parasita duma figa! Porco safado!" Antes que ele percebesse a minha presença, tirei a cara da janela e me escondi até que tivesse saído. A partir dali comecei a espionar a rotina dele quando mamãe estava fora. Várias vezes peguei o Clóvis cafungando no meu mijo e, como ele ficava tão empolgado que não escutava nem o telefone tocar, pude assistir melhor à cena sem ser descoberto.
— Que é que ele ficava fazendo? Só cheirando? Tirava o pau pra fora? Chegava a gozar?
— Gozava! Mas antes lambia a beira da privada, mergulhava a boca na água parada, xingava o tempo todo, o desgraçado! Ah, não tive dúvida: comecei a mijar pra fora, formando pocinhas no ladrilho e molhando bastante o assento do vaso, na volta toda. Ele ficava alucinado, Glauco! Esfregava a língua naquilo como se fosse um pano de chão! Imagine o gostinho de vingança que eu não sentia! Enquanto ele enxugava meu mijo frio, eu pensava: "Aí, seu verme, emporcalha essa boca de fossa! Mostra pra que serve essa língua de papel higiênico! Ainda faço você comer minha merda, seu esgoto humano!"
— Cara, que cena forte! E você, não gozava também?
— Nas minhas bronhas eu bem que imaginava a boca dele aberta na frente do meu pau ou debaixo do meu cu... Mas eu preferia outras fantasias. Eu queria que minhas namoradas gemessem de dor quando eu comesse o cuzinho delas, do mesmo jeito que mamãe gemia quando estava com ele no quarto...
— Estou vendo que você não tem nenhum bloqueio pra falar na sexualidade da sua mãe. Você se sente traumatizado?
— Lógico. Mas não vou ficar posando de criancinha carente nem guardando pudores. Senão nem teria por que estar dialogando com você agora.
— Também acho. Mas voltando àquela cena forte: isso se repetiu muito?
— Até a hora em que resolvi mostrar pra ele que eu sabia de tudo. Só que bolei um castigo daqueles que ninguém esquece. Em vez de encostar o sujeito na parede e jogar a verdade na cara dele, preferi preparar uma armadilha. Mijei num copo e deixei em cima do vaso tampado, como se a tábua fosse uma mesa e o copo estivesse cheio de cerveja. Caso mamãe entrasse em casa, dava tempo de ir lá e tirar o copo, mas quem chegou foi ele, no mesmo horário de sempre, achando que eu tinha ido jogar bola.
— E você, ficou de tocaia no observatório do costume?
— Não, desta vez fiquei no meu quarto até ter certeza de que ele tinha entrado no banheiro e trancado a porta, afobado e ansioso como sempre. Só então liguei o som e deixei rolar o rock dos Cramps como trilha sonora.
— Então não dava pra presenciar a reação dele quando deu de cara com o copo de mijo...
— Pois é, Glauco, mas ele não saiu lá de dentro logo que foi pego de surpresa, não. Em vez de xingar e vir atrás de mim pra tirar satisfações, ficou um tempão trancado, sem fazer barulho, curtindo sei lá o quê! Quem sabe um pouco de pânico, um pouco de ódio, um pouco de tesão e um pouco de rock... sem falar no sabor do mijo, que com certeza ainda tava morno.
— Você acha que ele bebeu tudo, mesmo naquele apuro?
— Tudo, não sei, mas que provou, provou. Disfarçou, fingiu que estava cagando, demorou, deu a descarga e acabou abrindo a porta e saindo com o copo na mão, vazio e lavado. Nem me chamou pra conversar, nem olhou pra minha cara.
— Imagino. Mas e depois, o ambiente não ficou insuportável?
— Pelo contrário, melhorou da água pro vinho, ou do mijo pro chope, se você prefere. Mamãe não entendeu direito por que diabo ele parou de pegar no meu pé e ficou mais tranqüilo quando estávamos os três frente a frente. Ela pensava que o Clóvis tinha cansado de me cobrar juízo e que já não tava nem aí. Mas eu sei que na cama ele descontava nela a humilhação que passava por minha causa. Ninguém tocava no assunto quando eu e ele nos encontrávamos. Ele só procurava evitar os encontros. Mas continuou freqüentando o banheiro, e eu continuei zoando e me vingando, mijando e deixando o copo ali, pra que ele se servisse...
— Você não teve outras chances de assistir pela janela?
— Não, ele fechava o vitral, que era fosco, e sem a fresta aberta não dava pra distinguir nada lá dentro. Mas ele ficava bem quieto, sabendo que eu ria da cara dele aqui fora. Um dia variei e fiz outra surpresa: um prato bem cheio, com um cagalhão daqueles! Parecia um quibe tamanho família!
— Sério? Será que ele comeu?
— Pelo menos cheirou, isso eu garanto! Aquilo fedia, Glauco! No dia seguinte o Clóvis não sabia onde enfiar a cara! Ou melhor, sabia muito bem!
— E o prato, foi repetido que nem o copo?
— Não, porque era mais cômodo mijar no copo. Mas também não deu pra repetir muito, porque eu logo dei um jeito de me mudar pra casa duns tios no interior, com a desculpa de que ia ter chance de jogar num time profissional. Até cheguei a impressionar uns olheiros, mas acabei arrumando trampo como entregador de pizza... e tudo acabou em guaraná...
Parece que nosso boleiro revê a mãe de tempos em tempos, mas, agora que está casado, os sogros lhe dão o amparo familiar que o padrasto sonegou. Hoje em dia, pelo jeito, o molecão já tem motivo para dar a descarga e ainda jogar um pouco de desinfetante no vaso...
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