GLAUCOMATOPÉIA [#60]


O MASSAGISTA MASOQUISTA



SONETO SUBEMPREGADO #3

Figuro-me na fábrica, a serviço
do japa autoritário, que me escala
no sábado e me chama à sua sala,
impondo que eu lhe chupe o pau, submisso.

Já fora da braguilha, seu chouriço
reganha a glande. Ponho-me a mamá-la.
Invade-me a narina o odor que exala,
e o cara até diverte-se com isso.

Afunda na poltrona, e eu me ajoelho,
curvado à sua frente, abocanhando,
sentindo a rola entrar até o pentelho.

Agora acomodado no comando,
me põe o pé na cara. Seu artelho
penetra-me na boca. O gosto é brando.



SONETO SUBEMPREGADO #4


Também aqui de boca vou trampar.
Algum nissei se informa da mamata
e como funcionário me contrata,
querendo um chupador particular.

Embora quadradíssimo no lar,
na farra o cara abusa e a rir desata.
Seu pênis é pequeno, a sola chata,
e os outros de capacho adora usar.

Na hora da sessão, lhe tiro o tênis
e o pé lhe massageio com a língua.
Depois faço caber na boca o pênis.

De sebo a língua sujo, e até respingo-a
de urina, quando as taras são infrenes
no japa, em quem sadismo não tem míngua.


Os sonetos acima me vieram dez anos depois que a cegueira completava seu estrago no olho em que, até então (1993) ainda havia visão residual. Naquele momento meu estado de ânimo era o pior que se possa imaginar, e fazer sonetos (como de resto qualquer atividade intelectual) seria algo fora de questão. Mesmo assim, meu tesão continuava vivo e esperneando, talvez até para compensar tanta angústia, e minhas tendências masoquistas já buscavam justificativa na iminente condição de "inválido" que me estava reservada. E já que ainda me achavam espirituoso, tratei de concentrar essa teimosa presença de espírito nos papos entre amigos e parentes, a fim de sondar neles alguma potencial tendência sádica. Digo "amigos e parentes" porque, àquela altura, a deficiência visual não me animava a aventuras sexuais com estranhos, mantendo-me preso aos círculos mais íntimos. Nesses círculos sempre havia alguém casado com uma nissei ou um sansei, de maneira que os almoços domingueiros, as churrascadas ou as festas em família acabavam reunindo algumas ocasionais e adicionais presenças nipônicas. Numa daquelas tardes me achei, depois de esvaziados os pratos, em companhia de dois japas quarentões como eu, enquanto o resto dos convidados formava outras rodinhas de papo pelo vasto jardim da casa, que ficava num condomínio fechado. Conversa vai, conversa vem, veio a cegueira à berlinda e despertou a inevitável curiosidade deles em saber como eu estava me virando, se já usava bengala ou se já aprendera a ler com os dedos. Um deles, o Minoru, mais reservado, constrangia-se ao perguntar sobre minha solitária e sedentária rotina caseira, mas o outro, Sadao, parecia à vontade para tocar nos detalhes mais melindrosos.

— E já saiu sua aposentadoria? — fala Minoru.

— Já, fui aposentado por invalidez.

— Sorte sua ter esse direito! — fala Sadao — Na sua situação muita gente fica desamparada só porque não prestou um concurso público.

— Tudo é relativo, né? Tem quem diga que é melhor mendigar no Brasil que ser escravo na Ásia. Vocês já ouviram falar como é dura a vida dum cego lá na Tailândia ou na Indonésia? Me contaram que eles viram massagistas cativos pra terem o que comer, sem direito a recusar nem reclamar nada...

— No Japão a coisa é mais humana... — fala Minoru — Tem muito cego massagista, mas a profissão lá tem dignidade, é bem respeitada.

— Se eu vivesse no Japão na certa ia ser massagista por opção, mas na Indonésia eu seria na marra. Dizem que pra tudo existe uma capacidade de adaptação no ser humano. É como a prostituição nas cadeias, né?

Neste ponto Minoru acha um pretexto para ir pegar mais cerveja e acaba entretido num papo mais palatável com umas primas. Sadao vai fazer o mesmo mas volta trazendo uma garrafa gelada. Enche meu copo e retoma o tema. Parece que mordeu a isca, ou acha que eu é que vou morder.

— Mas "Gurauko", você não acha humilhante esse negócio de massagear sem enxergar nem poder recusar qualquer tipo de massagem? Lá no Japão também tem algumas coisas que um cego não se sujeitaria a fazer. Só faria se quisesse. Não é só questão de adaptação ou de necessidade...

Mas acho que eu faria. A cegueira ensina a gente a ser humilde. Além do mais, sempre acreditei que os japoneses têm razão de se considerarem superiores. Um "gaijin" já é naturalmente inferior, quanto mais sendo cego! Em pouco tempo eu acabava me dando por honrado em trabalhar pra dar prazer a um "nihonjin", tenho certeza.

Sadao não reprime uma gargalhada curta e grossa, típica do macho nipônico, que pode rir alto, ao contrário da risada feminina, que só consegue ser timidamente baixinha e fininha.

— Olha que o japonês é muito exigente, hem "Gurauko"? Você ia ter que satisfazer um gosto meio extravagante...

— Eu sei disso. Usar só a mão não seria suficiente, né? Eu teria que estar preparado pra trabalhar com a boca, e teria que me acostumar com cheiros e gostos bem variados, certo?

Sadao solta outra daquelas gargalhadas escrotas, mas logo silencia ante a aproximação de vozes femininas. Chega a mulher dele com uma amiga, comentando que na certa estávamos contando as tais "piadas de homem", mas como elas só tinham vindo trazer umas frutas até a mesa à qual nos sentávamos, somos novamente deixados a sós e o papo prossegue.

— Como é que você sabe dessas coisas, "Gurauko"? Por acaso já praticou?

— Quase. Um amigo meu já passou por isso. Ele é cego de nascença e até fez curso de massagem, de reflexologia, de shiatsu, do-in, essas coisas todas. Mas na hora do vamos ver o que funcionou mesmo foi a língua. Ele costumava massagear a domicílio, sabia bengalar e tomar ônibus sozinho. Quer dizer: tinha boca pra tudo, não só pra ir a Roma. Um dia teve que atender um "oji-san" no escritório, depois do expediente. Tinha sido recomendado pelo filho do cara, outro que gostava de tirar uma casquinha do cego. Chegou lá, quando os funcionários do cara já estavam de saída, e, quando perguntou se um divã estava preparado, o cara disse que não precisava de divã pro tipo de massagem que o cego ia fazer. "Começa pelo pé", falou o "oji-san", e se acomodou numa poltrona, apoiando os pés num pufe. "Quero primeiro com a mão, depois com a língua!" O cego nem estranhou, porque já estava prevenido pra situações do tipo. Tratou de se agachar e foi descalçando as meias do freguês, que já estava sem sapato. Manipulou direitinho, de acordo com o tal "mapa holístico" da sola, e logo passou a lamber. Lógico que deu pra notar, ou melhor, pra sentir a bela frieira que o sujeito tinha nos dois mindinhos...

Sadao corta com sua risada gostosa e rapidinha.

— ...mas o massagista provou que sabia encarar com coragem as dificuldades da vida, o que deixou o patrão todo cheio de si. Quando a língua chegou no ponto onde o cheiro é tão salgado quanto o da frieira, o ego do japonês já estava lá em cima, escorrendo de alegria. Foi só abocanhar e deixar entrar fundo, bem devagar, de modo que o patrão avaliasse com calma a qualidade do serviço, o capricho no acabamento, a atenção em cada detalhe, o cuidado em não deixar nada sujo, nada pingado no chão, nem uma gota perdida, nem um só floquinho de sebo sem ser recolhido. O prazer do "oji-san" foi completo, físico e psicológico, vendo que o cego dependia da aprovação dele quanto ao desempenho da tarefa. E tanto dependia, que o massagista só se deu por aliviado quando o cliente abriu aquele sorriso descansado, de total satisfação, e falou: "Muuuito gostoso, né?" A prova de que o cego tinha trabalhado a contento foi ter sido chamado outras vezes a comparecer no gabinete do chefão daquela empresa. Esse amigo chegou a me recomendar pra um teste, mas não houve tempo, já que o pai teve que acompanhar o filho numa viagem ao Japão. Acho que estão lá até agora...

— Quer dizer que você ainda não sabe se passaria no teste...

— Certeza não tenho, mas posso garantir que ia me esforçar ao máximo.

— Quem sabe eu quebre o seu galho, hem, "Gurauko"? Sou bastante exigente, mas posso dar uma colher de chá sabendo que você não tem tanta prática quanto esse outro ceguinho... Que é que você me diz?

— Estou pronto pro sacrifício. É só me avisar com antecedência pra dar tempo de fazer uns exercícios de maxilar e uns gargarejos, e minha boca topa qualquer parada, até bexiga cheia e intestino solto!

— Assim é que se fala, ceguinho! Ligo pra você amanhã e marcamos a sessão, combinado?

O mais engraçado não foi o acesso de riso — muito mais longo e estrepitoso que o habitual -- que Sadao me jogou na cara assim que o fiz gozar pela primeira vez em minha garganta, mas sim a insistência de Minoru em querer saber do primo o que foi que ele fizera comigo a partir daquela tarde.

— Levei ele pra uma pescaria.

— Sério? Que é que ele foi fazer lá se não enxerga?

— Foi me ajudar a colocar minhoca no anzol...

— Não brinca! Vocês foram mesmo pescar?

— Claro! Ele até pensou que só ia pegar lambari, e acabou levando uma carpa... (e tome risada)

— Você é muito gozador, Sadao! Vai, conta aí! Que foi que você aprontou com ele?

— Nada de mais. Só dei a ele uma boa história de pescador pra contar. O mais gostoso de tudo é que nem precisei desembolsar num pesque-pague! Vai por mim, Minoru: a melhor higiene mental é quando você dá a um deficiente a chance de ser útil pra sua higiene corporal...

E desatou a rir, daquele seu jeitão tipicamente nipo-machista. Desnecessário dizer que as respectivas esposas nem desconfiavam do teor destes diálogos, ou antes, intuíam mas faziam de conta que tudo não passava de "piada de homem"...

GLAUCO MATTOSO
Poeta, letrista, ficcionista e humorista. Seus poemas, livros e canções podem ser visitados nos sítios oficiais:

http://sites.uol.com.br/glaucomattoso

http://sites.uol.com.br/formattoso
 

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