GLAUCOMATOPÉIA [#61]


O
INCOMODADO QUE NÃO SE MUDOU

SONETO 634

Às vezes fantasio um cego sujo
que na autopunição se martiriza.
Conheço casos outros. Num, à guisa
de escravo se oferece o dito-cujo.

Ilhado em seu papel de caramujo,
na rede virtual, pela pesquisa,
contata um tipo sádico que o pisa
na mesma condição da qual não fujo.

Na prática, o ceguinho é reduzido
a mero chupador particular
dalgum vizinho esperto e divertido.

Embora não consiga se lembrar
da voz que é familiar ao seu ouvido,
se entrega a alguém que mora em seu andar.


SONETO 635


Ocorre que o ceguinho reclamava
de rádio, de cachorro, de criança,
barulho que, por toda a vizinhança,
atrito entre condôminos agrava.

De sorte que, ao ceder a boca escrava
a alguém que, por acaso ou por vingança,
lhe ganha na internet a confiança,
da oral privacidade a cova cava.

Nem bem, sem suspeitar, recebe em casa
aquele a quem odeia e a quem já chupa,
é rindo que no orgasmo este extravasa.

E a este, cuja porra em catadupa
esguicha, é natural que um gozo praza
ao ver calada a boca que se ocupa.


SONETO 636


Ao síndico o ceguinho se queixara
do apartamento ao lado, cujo dono
agora sua boca faz de cono
metendo até a garganta a gorda vara.

Vizinho barulhento, cuja cara
se alegra quando ao cego tira o sono,
tomara-lhe a poltrona e a faz de trono
enquanto o cego, ao chão, se ajoelhara...

Ainda ouvindo a voz que respondia
tão malcriadamente à sua queixa
e não reciprocava seu "Bom dia!",

e sem reconhecê-la, o cego deixa
que a mesma voz lhe ordene e que se ria:
"Assim que eu gosto! Chupa que nem gueixa!"


Os três sonetos acima me vieram na época em que, pela rede virtual, travei contato com outro cego solitário disposto ao auto-sacrifício sexual. Até então eu me julgava um raríssimo caso de masoquismo gay legitimado pela deficiência visual, e pensava ser praticamente o único exemplo de cidadão que, enquanto implica com a vizinhança barulhenta, suplica a Zeus uma chance de ser fisicamente espezinhado pelo mais incivil dos vizinhos. De repente me defronto com outro gato-sapato das metropolitanas crônicas condominiais, e caio de quatro quando Anacleto, ao "ler" no computador falante meus sonetos mais despudorados, confessa ter passado iguais bocados na mão de outro morador do prédio. Não o meu edifício, claro, pois seria coincidência demais. Mesmo assim acho incrível a semelhança de nossas experiências. Por fone Anacleto foi me contando como rolou a coisa:

— Também uso o Dos Vox, Glauco, mas não tenho um sítio como você. Só mesmo o "emeio". Acontece que fiz uma coisa que você ainda não se animou a fazer: pus um classificado me oferecendo como chupeteiro.

— Pra mim seria perda de tempo. Quem vai querer um cego chupador de pé de macho? Nem tem seção de classificados onde eu pudesse anunciar na rede...

— Isso é o que você pensa, Glauco. Tem portal pra tudo, e quem tem dedo pra digitar tem com que ocupar a boca, pode estar certo.

— Mas você teve muito retorno pro anúncio?

— Não tanto quanto uma puta com olho de limão, cabelo de milho e lábio de morango, mas que pingavam uns gatos, pingavam.

— Mas vem cá: você tinha coragem de receber um estranho em casa, e ainda por cima sem poder ver a cara do sujeito?

— Aí é que tá: quase nunca aconteceu. Ficava mesmo só no sexo virtual, na troca de... digamos, "cartas de intenção". Pra falar a verdade, o tal vizinho foi o primeiro que eu deixei vir. Mas juro que eu não sabia que era ele.

— Por que deixou, então? Justo ele?

— Simples: insistiu muito, mais que os outros, pra me conhecer pessoalmente. E não insistiu pedindo, não: insistiu mandando, impondo como condição pra continuar o contato.

— E o cara tinha mesmo esse poder de persuasão? Ou era você que tava carente demais?

— As duas coisas. Mas resisti à tentação de encontrar outros caralhos, e aquele me venceu pela voz de comando. Acontece que o cara era tão folgado como interlocutor internauta quanto era como vizinho.

— E você não desconfiou que podia ser a mesma pessoa?

— Nada! E você acredita, Glauco, que mesmo tendo falado com ele por fone, não me toquei que era a voz do Jamil do apê de cima? Tá certo que até ali pouco tínhamos conversado, mas sendo ele tão folgado, rindo e cantando alto dentro e fora de casa, não dá pra entender como não reconheci aquele vozeirão de feirante...

— Por que você tinha queixa dele? Só barulho?

— E você acha pouco? Sem visão qualquer barulhinho incomoda, você sabe. Seu sono não é leve, Glauco? Então! O meu também. Pois o Jamil chegava de madrugada, batia porta, pisava duro no soalho de tábua, arrastava móvel, ligava som, conversava com visita, tudo na hora em que eu queria dormir! Não sei como os outros vizinhos não se perturbavam! Só se tinham medo do "turco" e não queriam reclamar! Mas eu perdi a paciência. Primeiro tentei falar com ele, resolver tudo de maneira civilizada. Foi pior. Jamil respondeu com quatro pedras na mão, e dali em diante não deu mais nem boa tarde, nem ele nem a mulher. Quando eu entrava no elevador, qualquer vizinho cumprimentava, perguntava se eu queria ajuda, apertava o botão do meu andar... Quando tinha gente no elevador mas ninguém respondia, era certeza ser ele. E a barulheira só piorou, parece que ele passou a fazer de propósito, pelo jeito como ria, cada vez mais alto. O engraçado é que isso costumava acontecer quando a mulher viajava... Em vez de aproveitar o sossego, aí é que o Jamil ficava mais agitado.

— Você não reclamou pro síndico?

— E adiantava? Eu já tava vendo a hora em que ia ter de tomar outras providências, mas essa hora foi atropelada pelo computador. Bem que eu percebi que os ruídos paravam no meio da madrugada, mas não era porque ele tivesse ido dormir: ficava conectado, quem sabe navegando na putaria digital...

— Como será que ele chegou até o seu anúncio?

— Sei lá. Disse ele que foi pelo buscador. Depois de ter se divertido sapateando no quarto, bem em cima da minha cabeça, lembrou da minha cegueira e resolveu pesquisar páginas de cegos pra ver como reagiam aos desrespeitos e às ofensas. No meio de muita "dignidade" e "cidadania" achou minha confissão de fraqueza e minha proposta de "serviço" compatível com minha posição inferiorizada, ou seja, chupar rola. Ah, imediatamente começou a me mandar "emeios".

— Como soube que era você? Pelo nome?

— Não, eu usava um codinome, mas na troca de mensagens fui dando pistas de onde morava, detalhes do bairro, da rua, do prédio. Só dei telefone depois duns dias, mas nem foi preciso citar número do prédio ou do apê, que ele já tinha sacado rapidinho.

— Ele mudou de conversa quando viu que era você?

— Mudou, mas só pra ficar ainda mais abusado. Primeiro escrevia que tava a fim de me foder a garganta até sufocar; depois que pegou meu fone avisou que ia me usar como mictório...

— E você sem saber que tava falando com o vizinho de cima?

— Pois é! No telefone ele baixava a voz, engrossava, falava mais devagar, com uma calma que o Jamil nunca tinha quando papeava sobre futebol nas mesinhas da padaria ou quando discutia com a mulher. Só mesmo pessoalmente foi que ele se identificou, mas aí já era tarde, ele tava dentro da minha sala, sentado no meu sofá, bebendo minha cerveja e rindo da minha cara... Não tive outra alternativa a não ser engolir em seco e responder que tava pronto pra começar a trabalhar...

— Que situação, hem? Cair numa armadilha dessas! Só mesmo a internet pra aproximar pessoas tão próximas mas tão incomunicáveis! Agora me diga: foi difícil satisfazer o Jamil?

— Até que não, porque na hora crítica a gente parece que entra em transe e só se concentra naquilo... Mas deixei que ele pensasse que tava me arrasando ao máximo, me reduzindo a lixo...

— Ele foi violento?

— Porrada não chegou a dar, mas ameaçava cada vez que dava uma ordem. Duro mesmo foi só agüentar a rola quando ele metia fundo e bombava. Ficava sentado, de perna bem aberta, e eu ajoelhado no tapete. De vez em quando ele chegava a passar as coxas por cima dos meus ombros, cruzando os pés nas minhas costas. Eu era fodido como um bicho, Glauco, minha boca parecia buceta de cadela. Eu suava, sentia meu nariz escorrendo, mas tinha que continuar até que ele resolvesse mudar de posição e mandasse lamber o talo ou o saco...

— Ele fedia?

— O normal. Achei que ia ser mais forte, mas o cheiro era de cueca suja, como qualquer um antes do banho. Só depois de gozar é que o bicho pegava, porque ele não deixava tirar da boca e acabava aliviando a bexiga depois de esporrar...

— Dava pra engolir tudo?

— Dava porque era só um restinho. A mijada maior ele sempre soltava antes, na minha privada. O detalhe é que nunca dava a descarga. Deixava fedendo, porque eu já tinha dito que iria lá cheirar depois que ele tivesse saído. Só uma vez me fez cheirar na frente dele, mas aí tive que debruçar no vaso até encostar a boca na água. Fiquei com medo que ele empurrasse minha cabeça pra dentro, mas ele só ficou rindo e mandando: "Aí, ceguinho, beija o mijo! Molha a cara! Tá sentindo, meu? Você não passa disso, um buraco de descarga!"

— Cena forte, hem? Isso se repetiu?

— A chupeta sim, muitas vezes, mas nós dois no banheiro foi só aquela vez.

— Ninguém no prédio percebia que vocês se encontravam?

— Acho que não. A comunicação nunca era pelo interfone. Ele sempre avisava antes de vir, e pra que não tocasse a campainha eu deixava a porta só encostada.

— E as sessões, eram demoradas?

— Não, cada vez mais rápidas. Até que ele acabou enjoando. Ficou tudo fácil demais, perdeu a graça de me ver sem jeito, passado de vergonha, como das primeiras vezes. A coisa foi ficando indiferente, eu aprendi a controlar a ânsia, a beber os jatinhos de mijo sem babar, tudo funcionava sem trauma. De repente até a mulher dele parou de viajar. Era jornalista, sempre pautada pra cobrir o que rolava em tudo quanto era lugar. Parece que promoveram a fulana e ela já não precisava ficar saindo de São Paulo. Com ela em casa, o Jamil falava menos, saía menos, enchia menos o saco dos vizinhos... e enchia menos minha boca, também.

— A coisa morreu assim, sem mais nem menos?

— Pois é, Glauco, não teve desfecho de cinema. Depois dum tempo, o Jamil até fazia de conta que nem me conhecia. Ele e a mulher cruzavam comigo no elevador, no saguão, e passavam conversando, simplesmente ignorando a minha presença. Fui como uma camisinha ou um pedaço de papel higiênico, que a gente usa e descarta.

— Antes assim do que um Jamil definitivo na sua sala ou na sua privada, não acha?

— E antes assim que um barulho definitivo no meu teto! Que diminuiu, não resta dúvida. Ou vai ver que fui eu que me acostumei...? Sei lá, Glauco, prefiro não tirar nenhuma conclusão.

— "Durma-se com um barulho desses!", como diria um leitor que duvida da veracidade dos meus sonetos...

GLAUCO MATTOSO
Poeta, letrista, ficcionista e humorista. Seus poemas, livros e canções podem ser visitados nos sítios oficiais:

http://sites.uol.com.br/glaucomattoso

http://sites.uol.com.br/formattoso
 

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