GLAUCOMATOPÉIA [#62]
LIÇÃO DE CASA
SONETO 1002
O grupo SATANAZI me contata:
"Você, seu cego escroto, vai ver só!
Na nossa mão você vai ser, sem dó,
tratado abaixo até de vira-lata!"
Alguns dias depois daquela data,
refém sou feito e estou num cafundó.
Ali mal chego e logo lambo o pó
da bota de quem, rindo, me maltrata.
Me fazem comer merda e beber mijo.
Estupram-me na boca e nela escarram.
De todos provo e sinto o pinto rijo.
Amostra foi, mas basta pra que varram
meu resto de amor-próprio, e me corrijo:
na rua já não xingo se me esbarram.
O soneto acima me veio após uma visita de Carlos Carneiro Lobo, a quem costumo mostrar na estante os títulos que mais freqüentemente me inspiram, pedindo-lhe que mos releia nas páginas assinaladas com apontamentos à margem. Compulsávamos os volumes da série que Winston Leyland editara na Gay Sunshine Press sob títulos variados mas mantendo o subtítulo de TRUE HOMOSEXUAL EXPERIENCES, nos quais foram recolhidos os depoimentos e as entrevistas que saíam no magazine STH (STRAIGHT TO HELL) de Boyd McDonald. O que estava em pauta era justamente a autenticidade de tais relatos. O fidedigno contista de HISTÓRIAS MAL CONTADAS era cauteloso:
— Não sei, Glauco, é complicado separar o que seriam confissões íntimas e o que não passaria de fantasia masturbatória.
— Mesmo assim, parto do princípio de que a mera probabilidade de ser verossímil tudo que é verídico (e vice-versa) já basta pra que toda punheta seja satisfatória a partir dessas leituras.
— Nesse ponto não tenho o que discordar. Mas o estoque de perversões é tão variado (ou tão repetitivo, dependendo do ponto de vista) que até o leitor experiente pode ficar meio perdido quando se trata de distinguir a parcela mais óbvia das histórias fantasiosas.
— Ah, mas dá pra pegar quando a coisa é meio forçada... Quer ver? Confira aí no primeiro volume aquele depoimento do podólatra lambedor de tênis. Um que tá marcado em vermelho.
Carlos foi folheando até achar. Leu em voz alta e num tom afetado de locutor comercial: "Here is my true story of when I attended a mid-Texas university and was a sneaker slave to a basketball player. In my last year at the university I was fortunate enough to have as a roommate a tall basketball jock. At first I was afraid to approach him but finally told him I 'loved' his big Converse sneakers. After some small talk I asked him if I could tongue wash his sneaks. He said, 'Get to it freak.' He stretched out on a chair while I got on my belly and cleaned his big size 14s clean. He was not much of a basketball player, had average looks but big feet. I of course cleaned his sneakers anytime after tha. His friend was in the R.O.T.C. and brought his boots and shoes to me to be spit shined every 2 weeks. This guy was all military & demanded nothing but the best. Often he told me they were not done good enough and I had to spend many long hours servicing his boots & shoes. I of course did without a whimper. They did not ask for any sex, except two times, when they came in the room a bit tipsy & the military guy ordered me to 'blow me you fag', while the basketball jock would jack off. I really miss that place. I still have a pair of his size 14 sneakers which I begged him to give me before I left school. Since then I have had to lick hustlers" sneakers." (85)
— Reparou, Carlos, que tudo parece fiel aos fatos? E por quê? Porque nem tudo corre como o depoente quer, e tudo ocorre no máximo a três. Uma das pistas pra detectar se o cara exagera ou inventa é a quantidade de personagens ou de orgasmos. Muita gente ou muito gozo já dá pra desconfiar, ainda que o caso em si tenha fundamento. Agora leia um que não me convence muito. Aquele que tem um cartão marcando a página, a história do professor que foi vendido como escravo.
Carlos recolocou uma brochura na estante, pegou outra, abriu, pigarreou, imprimiu mais comicidade ao timbre metálico dum narrador de radionovela e leu: "Two rough-looking H/D riders saw me standing in the station and offered me a ride. I was roared down the highway to a garage-like stable, stripped, blindfolded with a rubber section over which a gas mask was placed with a tube going into my mouth. My hands were chained to beams overhead, and I was whipped with belts on my back and butt and felt liquid pouring down the nozzle into my mouth. I realized it was piss and voices told me many more bikers were now present. Leather and chains with weights were attached to my sex parts, and I felt hands pulling the hair under my arms, around my cock and rectum. Then an intense tingling heat made me realize my hair was being burned off. Several times my legs was raised, and I was fucked. I must have had several quarts of beer piss forced into my mouth. A sharp pain shot through my ears as they were pierced and rings inserted. My tits were pierced and rings put in and thumb tacks studded my ass prior to intense beating with studded belts. I awakened next morning to find a fine looking boy ready to take me to L. A. on his H/D. Only later did I see the words MALE and WHORE on each side of my butt. When he dropped me off, he said, 'We know your name, address and employer, and we have pictures of last night, so don't try anything ever against us.' The brand gradually wore away and my tits healed. From time to time I am sold for sex by one or the other of the several who send someone through town. An odd experience for a Phi Beta Kappa who had planned to be a priest and is a sedate college professor! But I am advertised by these guys as a supreme peace of ass. At least six have sold me at times. One has made over $1,000 on me. For a full professor to be sold to anyone at any time is degrading, yet exciting."
— Então, Carlos, sentiu a diferença? Mesmo sabendo que os americanos levam a sério a cena sadomasoquista e que as gangues de motoqueiros têm seus rituais de orgia, fica difícil acreditar que um professor universitário saído dum ambiente tão conservador se preste a tal papel. Sem falar que ele não perde a chance de lembrar que o motoqueiro era bem-apessoado, pra não dizer um gatão. Ora, ao menos confessasse que os caras eram todos feios, sujos e malvados! Quem sabe assim a coisa pareceria mais plausível, hem?
— Você tá observando bem, Glauco, mas o fato em si não é tão absurdo, não. Aqui mesmo sei dum caso parecido.
— De motoqueiros raptando um professor? Onde?
— Não de motoqueiros, mas dum professor que foi seqüestrado pela gangue dum ex-aluno. Não lhe conto em detalhe porque quem sabe de tudo é o cara que me falou disso por alto. Se quiser ponho você em contato com ele.
Claro que eu quis, mas o contato foi só por fone. Recomendado pelo contista, meu nome foi digno da confiança de Jorjão, hoje pai de família, que na adolescência tinha participado da gangue. Aos poucos o sujeito foi se abrindo e logo se imbuiu do meu espírito lúdico e cínico no trato desses assuntos submundanos. Digamos que a história pudesse ser desfiada numa única ligação e façamos de conta que o papo tenha rolado assim:
— Você tava no grupo desde o começo?
— Isso. Primeiro era só o Davidinho, o irmão dele, Damião, e mais dois caras, o Cavalão e o Bugre, mas quando deram o nome de SATANAZI eu já tinha entrado junto com mais uns cinco.
— Todos da mesma escola?
— Não, uns eram ex-alunos, outros nem tavam estudando.
— Quem tinha idéias mais satânicas? Quem era nazista?
— Tudo era da cabeça do Davidinho. A gente até brincava que ele é que devia ter o nome do irmão: Damião. Por causa do Damien, aquele filho do Diabo no filme A PROFECIA, saca? Mas o Damião acabou saindo logo da turma, porque não tava a fim de barbarizar nem de vandalizar. Acabou entrando pra aeronáutica, agora deve ser piloto. Já o David foi parar lá pras bandas da fronteira paraguaia, acho que entrou pra pistolagem. Ele sempre foi maluco e revoltado, com mania de vingança. Tudo pra ele era acerto de conta, desforra, lei de Talião, essas coisas. Ele queria rir por último em tudo e ainda comprar a briga dos outros. Sempre se achou um justiceiro, mas a lei dele era a crueldade, não tinha nada de positivo.
-- E por que você acha que ele ficou assim?
— Sei lá, vai ver que é porque ele era mais raquítico que a gente. O que tinha de miúdo tinha de ruim. Parece que apanhou bastante quando era criança, em casa e na escola. Naquela época era meio bobinho, todo mundo pensava que era marica. Até ganhou apelido de "Daviadinho". Tinha que agüentar gozação e pancada, porque ninguém aceitava o cara em nenhuma turma e ele não podia se defender sozinho. Acho que dar o cu ele não deu, porque no fundo ele não tinha tendência pra ser bicha, saca? Só era mesmo zoado, ninguém deixava em paz um pirralho daquele. Se reagia, apanhava porque reagia; se não ligava, apanhava pra se ligar. Só conseguia trégua quando desenhava pros colegas.
—Desenhava? Pra quê?
— Aula de educação artística. Ele tinha que fazer o trabalho dos outros pra ser poupado. Era o único que tinha queda pra essas coisas, mas depois deixou pra lá porque não achou incentivo. Quando passou dos dez e mudou de escola, começou a ficar mais esperto e já liderava uma turminha da pesada. Percebeu que tinha inteligência pra mais arte que a do desenho, saca? Juntou uns caras mais troncudos e mais burros que ele e passou a infernizar só com a influência que tinha. Qualquer coisinha, e ele mandava os capangas fazerem um "servicinho" nos inimigos. A partir daí começou a bolar o grupo de sadistas e a escolher as vítimas.
— Você se considerava menos inteligente que o Davidinho?
— Não, Glauco, eu não era só músculo, não, nem os outros membros do SATANAZI, mas quem tinha as idéias primeiro e quem pensava em tudo era ele. Impossível querer discutir com ele a respeito de métodos de tortura, de atrocidades de guerra, de crimes hediondos ou de taras esquisitas. Ele já tinha lido tudo que se podia achar em livro, jornal, filme, gibi...
— E quem eram as vítimas? Que acontecia com elas?
— Quase sempre alguém das outras turmas. Mas também tinha algum namorado novo duma menina que dispensou colega nosso, ou algum irmão que tentasse proteger a irmã caso ela fosse currada pelo grupo ou escolhida como garota dum de nós. O único adulto bem mais velho que ficou cativo nosso foi mesmo o professor Haroldo. Os moleques a gente segurava só umas horas e torturava, mas o Haroldo ficou em nosso poder a noite inteira e depois mais vezes.
— Como eram as torturas?
— Ah, a gente sempre amarrava. O Davidinho tinha verdadeira fascinação por corda e corrente. Descolou até algema e mordaça. A gente campanava a vítima até tocaiar sozinha no caminho. A área era muito descampada, como toda periferia braba. Levávamos o cara pruma fábrica abandonada na beira do rio, onde o capim era tão alto que, além de nós, ninguém chegava perto, só de medo das aranhas. Aliás, a gente usava até as aranhas na tortura. Tinha que ver, Glauco, que delícia assistir o desespero do moleque amarrado quando sentia aquelas bichonas peludas e pernudas andando no corpo pelado e amarrado! Usávamos também cobra, centopéia... e teve neguinho que saiu picado, precisando de socorro e de antídoto...
— Mas e as torturas sexuais? Rolava muita coisa?
— Só! Chupar rola e ser enrabado era rotina. Melhor ainda quando o cara era obrigado a beber mijo e comer merda. O Davidinho fazia questão de "cantar o jogo" antes, durante e depois, escolhendo quem ia cagar na boca de quem. Ficava assistindo e dando as instruções. Só no caso do professor fez questão de fazer tudo pessoalmente.
— Que foi que o sujeito fez pra merecer esse tratamento privilegiado do Davidinho?
— Reprovou o cara. Só isso. Ele dava aula de matemática, e o Davidinho odiava matemática. Haroldo quis bancar o durão e não deu colher de chá pra ninguém da classe. Corria a fama de que naquela sala estavam os piores elementos do colégio e o Haroldo achou que ia dar exemplo de disciplina só porque controlava as notas duma matéria difícil... Coitado, não sabia com quem tava mexendo! A vingança foi tramada com bastante antecedência, porque nosso grupo nem tava formado ainda. Só dali a dois anos foi que conseguimos armar uma cilada pro Haroldo e
capturar o bichão. Foi assim: Davidinho descobriu que o sacana tava a fim duma aluna. Era uma menina mais velha que as outras, mais atrasada no curso, mas muito gostosa. Haroldo facilitava as coisas pra ela. Tudo não ia passar dum casinho de proteção e de cama se a gente não entrasse no meio. Enquadramos a Gisela e ela não teve escolha: ou nos ajudava a castigar o Haroldo, ou a currada seria ela. Pra falar a verdade até que ela já tinha passado pela cama do Davidinho, mas alguma coisa não encaixou, o negócio não foi pra frente, e isso só aumentava o gostinho dele em dar um corretivo no Haroldo. Assim, quando o professor achou que a Gisela caía na rede, era ele quem caía na nossa. Gisela aceitou passar um feriadão com ele mas sugeriu uma casa de praia que era da tia dela e vivia fechada. Desceram pra Mongaguá no carro dele e, quando chegaram, nós já estávamos na casa. Haroldo nem teve tempo de desconfiar. A casa era meio afastada, sem movimento por perto, e ficamos bem quietos lá dentro até que os dois entrassem. Só quando o Haroldo viu meu trezoitão é que entendeu tudo, mas aí já era tarde. Levado pro quarto, foi amarrado e jogado num colchonete no chão. A gente já tava comemorando a cara de pavor dele quando o Davidinho pegou todo mundo de surpresa dizendo que "Agora é só eu e ele. Vocês vão dar um rolê por aí e voltam daqui a duas horas. Depois eu deixo quem quiser tirar uma casquinha dele." Fiquei só eu na sala, montando guarda, e a turma saiu com a Gisela na perua do Haroldo. Dali escutei a voz do Davidinho dando ordens pro Haroldo e rindo. Haroldo nem falava, porque a primeira ordem foi manter bico calado pra não apanhar ainda mais. Davidinho não quis amordaçar porque "precisava da boca dele livre pra trabalhar". Haroldo só ficou escutando e obedecendo: "E aí, véio? Meu pé tá pesado? Cala a boca, não mandei responder! E não quero grito! Tem que agüentarquieto, senão não sai daqui vivo! Não vira a cara, olha bem pro meu pé! Tá doendo? Beleza, assim que eu quero! Agora beija! Eu chuto e você beija, isso! Agora lambe! Anda, passa essa língua na sola! Não tá vendo como esse tênis tá sujo? Trata de limpar! Agora chupa o bico! Engole tudo, que meu pé cabe na sua boca!" Dali a pouco dava pra ouvir o Haroldo engasgando com o mijo do Davidinho. "Tem que engolir! Se cuspir apanha! Agora vai passando a língua na cabeça! Até limpar tudo! Isso... isso... Babaca! Quem pensa que é, o gostosão do pedaço? Sente o gosto da rola! Chupa fundo! E aí? Acha pequeno agora? Quero ver achar pequeno agora!" Parecia que o Davidinho tava montado na cara dele, porque o cara só resmungava abafado. Davidinho gozava dando gargalhada, era um cacoete dele. Riu à beça, depois foi aquele silêncio e a voz do Davidinho falava mais baixo: "Isso, limpa bem! Hoje o papel higiênico tava no fim e não deu pra limpar tudo... Você completa o serviço, vai! Mais fundo! Mexe essa língua, porra! Aí, agora senti firmeza!" Mais um tempo, e Haroldo gemia de novo. Estalavam uns tapas, umas soladas, e os gemidos paravam. Quando Davidinho abriu a porta e me deixou ver o Haroldo, o corpo dele tava todo marcado, queimado com ponta de cigarro, arranhado pela areia do tênis, fedendo de mijo. Dava vontade de cuspir de nojo. Cuspi bem nacara dele. "Faz que nem eu", disse o Davidinho, "Escarra dentro da boca e manda engolir!" Quando os outros voltaram, eu e Davidinho lanchávamos na cozinha e o Haroldo estava amordaçado no quarto, todo mijado e machucado. Risada geral, até da Gisela, e tome mais porrada. Passamos o resto da tarde e da noite assim, entre a praia e a casa, entre foder a Gisela e zoar o Haroldo. Na manhã seguinte subimos a serra e deixamos o cara lá, só meio amarrado. Ficou avisado pra nem pensar em entregar a gente, senão a próxima sessão teria um cadáver amarrado e mijado em vez dum professor de matemática vivo e saudável, pronto pra outra. Se o cara aproveitou a lição, não sei. Só sei que, passado um tempo, cruzou com o Davidinho, que riu na cara dele e falou: "E aí, véio? Tá com saudade do gostinho? Da próxima vez minha sola vai estar menos suja, tá legal? Vou lhe dar um refresco. Como você não deu queixa e ficou na sua, daqui pra frente vai apanhar menos e vai sair um pouco mais limpo. Que tal? Não acha que sou bonzinho?" David me contou que o sangue subiu na cara do Haroldo, mas mesmo vermelho de vergonha e raiva ele não disse um "a", nem reagiu quando, uma semana depois, Davidinho e eu esperamos no portão do colégio até que ele saísse. Teve que nos acompanhar, de "livre e espontânea vontade", até a quadra coberta onde os alunos praticavam esporte. Naquela hora da noite quase ninguém ficava por lá, e Davidinho pôde se trancar com Haroldo no vestiário enquanto eu e o Bugre dávamos cobertura do lado de fora. Davidinho contou que dessa vez Haroldo tava bem mais manso e "colaborou" em tudo, recebendo o castigo sem estrebuchar nem resmungar. Acho que foi justamente por isso, pelo conformismo do Haroldo, que Davidinho perdeu o gosto em castiga depois da terceira ou quarta sessão. Sorte do professor, que recuperou aquele seu pique pra dar as aulas. A alunada já vinha notando que o Haroldão andava meio abatido, parecia adoentado, mas logo sentiram que "sarou" e voltou à antiga forma, durão como sempre. Pelo jeito, todo mundo ficou mais calejado com aquele exercício de humildade, hem, Glauco? Até o Davidinho dava impressão de estar menos revoltado, mais tolerante com todo mundo... Engraçado, né?
— Olha, Jorjão, você tocou num ponto bem curioso. Por que será que o ser humano gosta de se comparar pra ver quem sofre menos ou quem goza mais? Parece que o gozo não funciona sozinho, só quando leva vantagem em cima da concorrência, não acha?
— Pois é, Glaucão, e se não fosse assim o grupo SATANAZI nem teria existido...
|