GLAUCOMATOPÉIA [#63]


O ZELADOR FELADOR


SONETO 685

Bizarra toalete! Sem carinho,
apenas obrigada pelo impulso,
a língua quer que tenha gosto insulso
a crosta amarelenta de sebinho.

Que nada! Ante o fedor, até o focinho
dum bicho enjeitaria, no convulso
engulho nauseado, aquele avulso
espécime de glande que esquadrinho.

O cara que me obriga acostumou-se
a ter seu pau lavado na saliva,
mas junta por semana a casca doce.

Sem vê-lo, só seu cheiro me cativa,
além da voz, que é bruta como um couce:
"Engole, cego!" — e a boca enche, passiva.

O soneto acima me veio no dia seguinte a um sarau pornô, para o qual cada um dos participantes havia levado alguns poemas de própria lavra
acerca do tema orogenital. Aproveitando o clima, os poetas comentavam o ato felativo ou cunilingual à luz de tratadistas tão diversos quanto
Vatsyayana (nos KAMA SUTRA), Paul Ableman (em A BOCA SENSUAL) ou Gershon Legman (em O BEIJO MAIS ÍNTIMO).

— Vá lá que o capítulo do "Auparishtaka" nos KAMA SUTRA seja um festival de filigranas artificiais com cara de misticismo. Mas os
contemporâneos também são postiços e não conseguem dar cara de cientificismo a suas fantasias pessoais. (ressalva o mineiro José Maria
Travassos)

— Que tudo é fantasia pra sofisticar uma coisa das mais simples, não resta dúvida. Mas deixem que eu puxe uma brasinha pro meu peixe: naquele mesmo texto sobre o "Auparishtaka" sobra um lembretezinho final a respeito da possibilidade de que a felação seja praticada entre homens, pelo servo no seu superior, na falta de solução mais convencional... Pelo menos o KAMA SUTRA não descarta a relação homo, como faz o "moderninho" Legman...

— Moderninho? (intervém o goiano Agesilau Ararigboya) Esse cara é de um machismo troglodita! Alguém leu o que ele fala da posição da mulher na chupada?

— Aquele papo da irrumação em vez da felação?

— Exato. Quando ele diz que na felação o homem fica passivo e a mulher ativa, dá pra entender que ele sinta falta de bombar e controlar a penetração. Mas quando ele insiste que o macho é quem tem de foder a boca da fêmea, não consegue disfarçar a brutalidade. Bem que ele tenta
dar uma de "cavalheiro": alerta que ninguém precisa dar porrada na coitada nem estuprar a boca dela. Basta segurar firme pelo cabelo ou pela orelha, pra mostrar "delicadamente" o que ela "deve" fazer... Muito "gentil", mesmo...

— A questão toda se resume no seguinte: nenhum tipo de sexo oral "enobrece" quem abre a boca. Esse negócio de "chupar com ternura" ou de
"ser cavalheiro" é conversa mole prum negócio duro. A verdade pura e simples é que a chupeta animaliza quem chupa, emporcalha o ser humano, e, não fosse isso, nem teria graça! (concluo eu).

— Aliás, o poema do Glauco toca justamente nesse ponto. Posso reler?

Suspende-se o debate enquanto o paulistano Plínio de Azevedo Camargo emposta a voz para me paparicar:


SONETO OROERÓTICO (ou OROTEÓRICO)

Segundo especialistas, a chupeta
depende da atitude do chupado:
se o pau recebe tudo, acomodado,
ou fode a boca feito uma boceta.

Pratica "irrumação" o pau que meta
e foda a boca até ter esporrado;
Pratica "felação" se for mamado
e a boca executar uma punheta.

Em ambos casos, mesma conclusão.
O esperma ejaculado na garganta
destino certo tem: deglutição.

Segunda conclusão: de nada adianta
negar que a boca sofra humilhação,
pois, só de pensar nisso, o pau levanta.


— Vejam bem (insisto) que, além dessa questão de quem seria ativo ou passivo, dominador ou dominado, o que importa é o lado sujo do sexo
oral. Nesse ponto o Ableman é bem categórico: não se pode exigir muita assepsia, e um pouco de falta de higiene faz parte da natureza e até da
saúde humana, já que, quanto mais limpo, mais vulnerável fica nosso organismo.

— O Glauco sempre vendendo o peixe podre dele! (brinca o Agesilau) O Legman também tende a aceitar essa tese do "ajoelhou, tem de rezar" e de que a sujeira faz parte do jogo, mas pra livrar a cara e manter sua postura "técnica" transcreve um manual "prático" atribuído a um pornógrafo francês, onde as mulheres são instruídas a superar o nojo mesmo que o macho não seja muito chegado a um asseio. Até releio os
trechos exatos...

Agesilau abre o livro O BEIJO MAIS ÍNTIMO no ponto previamente marcado e refresca nossa memória: "a mulher passa a língua agilmente mas com firmeza em torno de toda a coroa da glande do pênis. Assim fazendo, não dará atenção a qualquer secreção preliminar do fluido pré-coital do homem, nem a quaisquer partículas possíveis do esmegma por acaso presentes sob o prepúcio. Isso será lamentável, sem dúvida, mas..." "O
leitor deve ter observado que até agora não houve referência a lavagens ou abluções de qualquer espécie. Isso é intencional. O apreciador da
felação é em geral muito refinado para permitir que as mais nobres e mais preciosas partes de sua pessoa sejam contaminadas pela sujeira. Deve-se presumir que a limpeza habitual do homem está acima de qualquer dúvida. Se esse não for, porém, o caso, não se pode negar que se trata
de uma circunstância desagradável, mas à qual a mulher — e é precisamente aqui que se faz necessária a tendência filosófica do seu
caráter -- não deve dar a menor importância." Fecha a brochura e nos questiona:

— Agora pergunto: não é uma demonstração cabal do mais politicamente incorreto dos machismos?

— E eu pergunto: e daí? Não é porque sou gay que descarto esse componente sadomasoquista na dose de sujeira que o felador ou a felatriz
tem de suportar. Pelo contrário: isso só reforça o fascínio do tabu. Quanto menos puro, mais sublime.

— O Glauco adora um paradoxo! Você devia ter conhecido um cara que trabalhou no meu prédio, Glauco. O caso dele ilustra bem essa sua
teoria. (acode o baiano Jurandir Palmeira, que até então não abrira a boca).

— Por que você não aproveita e participa mais? Esmiuce a coisa! (sugiro logo, antes que os outros desviem o papo para vias mais vaginais)

— A história é a seguinte: o síndico do meu condomínio tava pra ser reeleito quando anunciou que ia se mudar. A mulher dele tava grávida do
terceiro filho e a família já precisava dum apê maior. Ainda nem tinha candidato pro lugar do Osvaldo quando ele chegou pra mim e sugeriu que
eu me habilitasse ao cargo. Minha mulher achava que seria um abacaxi, mas resolvi topar, mesmo porque o mandato era curto e, se estivesse de
saco cheio, eu também podia abrir mão da reeleição. Logo depois da assembléia que me empossou, procurei o Osvaldo e pedi a ele que me
passasse os macetes da função, tanto dos prós como dos contras. Osvaldo foi bem mais franco do que eu esperava: abriu o jogo e deu todas as
dicas. Foi quando veio à pauta a situação do zelador. Eu tava em dúvida se o Odorico devia ser mantido. O cara me parecia meio turrão, dizem que maltratava até a esposa, com quem morava no apezinho de cobertura no bloco do fundo. Mas o ex-síndico me tranqüilizou: "Vai por mim, Jurandir. O Odorico é o cara certo no lugar certo. Pode ser bronco, mas conhece bem o prédio e sabe fazer de tudo." Aí deu uma risadinha
maliciosa. "Quando eu digo 'de tudo' é porque ele faz o que a gente quiser. É só saber mandar." Pôs a mão no meu ombro e quase cochichou:
"Vou lhe revelar um segredinho profissional. Faça ele chupar seu pau, e você vai ganhar total dedicação do cara..." Pensei que Osvaldo falava no sentido figurado, e ri como quem tinha entendido, mas ele esclareceu logo: "Não digo só que Odorico seja puxa-saco, não. Ele chupa de
verdade. A chupeta mais caprichada que você pode imaginar. Quem vê o cara não diz que aquele abrutalhado engula uma rola com tamanha
capacidade!" Ainda achei que Osvaldo tava brincando, mas ele assegurou: "Seja bem autoritário: logo de cara chame o Odorico e mande chupar. Você vai ter um cachorro fiel pro resto da vida, pode acreditar!" Osvaldo só me contava aquilo porque nos dávamos bem e eu seria seu sucessor. Pensei em deixar pra lá, mas a idéia ficou minhocando e na primeira oportunidade chamei o Odorico ao meu apê, numa hora em que minha mulher tava fora, e, aproveitando os vários assuntos de serviço, sondei o zelador: "O Osvaldo me falou que eu podia confiar em você pra tudo, e disse que você tem umas habilidades especiais..."

"Então o senhor tá sabendo?"

"Estou. Por isso mesmo é que resolvi que você vai continuar trabalhando pra nós."

"Nesse caso o senhor pode ter certeza de que vou fazer o serviço direitinho, do jeito que fiz pro doutor Osvaldo."

"Assim é que se fala. Que tal começar a partir de já?"

— E fiz um gesto de quem vai desapertar o cinto depois do almoço. A senha funcionou como um botão de controle remoto. Odorico se abaixou
como se fosse amarrar o sapato e olhou direto na direção do meu pau. Vendo que a coisa era pra valer, abaixei as calças e me sentei na
poltrona mais próxima, enquanto o zelador se ajoelhava na minha frente sem me encarar. Olhei pruns quadros na parede e senti meu pau sendo
envolvido por uma sensação incrível. Era como se uma esponja ensaboada e macia me punhetasse bem de leve, provocando uma onda de deleite. Dava pra sentir a porra subindo lá do fundo até escorrer no meio daquela saliva pegajosa. Foi um orgasmo tão rápido que mal acreditei. Quando baixei a vista, deparei com aquela cabeça de carapinha encaixada no meio das minhas virilhas, o pau ainda dentro da boca, terminando de esguichar uma esporrada que parecia não ter fim. Nunca ninguém tinha me chupado com tanta eficiência nem causado um prazer tão forte. Não sei dizer se foi com a língua que ele fez aquilo, ou só com uma sucção muito suave, ou tudo junto. De repente ele se levantou, fez de novo aquela cara fechada de bicho do mato e perguntou: "O senhor tá satisfeito? Então dá licença, já vou indo." Antes que eu respondesse, concluiu: "Quando precisar, doutor, estou sempre às ordens." Fiquei mais surpreso ainda quando verifiquei que minha pica tava praticamente seca, ao contrário do que eu imaginava. Toda aquela baba tinha sido engolida junto com a porra, como se fosse a água que sai pelo ralo depois que o chão tá lavado. Repeti a dose uma porção de vezes, mas entre uma e outra corria um tempo em que eu me punha a matutar que raio de impulso levava um sujeito como Odorico a praticar um ato tão pouco másculo, sendo que tudo nele era rude. Só fui perguntar perto da época em que ele deixou o emprego. A resposta dele manteve a coisa meio enigmática, mas de certa forma corrobora a hipótese levantada pelo Glauco: "Ah, doutor, meu pai me ensinou que todo serviço tem que ser bem feito. Por maior porcaria que seja, a gente tem que dar tudo e fazer o melhor possível. Quanto mais duro, mais a gente tem que provar que dá conta. Aprendi que um emprego garantido depende disso." Indaguei qual a profissão do pai dele. "Era faxineiro, mas fez um pouco de tudo." Odorico aproveitou a oportunidade pra me pedir que continuasse guardando segredo daquele bico que me prestava. "Só pro novo síndico o senhor conta, quando chegar a hora, tá bem, doutor?" Pena que o cargo do Odorico não fosse tão estável como ele esperava. Não tive chance de repassar o segredo ao próximo síndico, já que Odorico criou caso com uns moradores que o achavam malcriado e respondão, e acabou se demitindo antes que eu mesmo tivesse que tomar qualquer providência... Até hoje, quando lembro do cara, fico me perguntando se por acaso conseguiu colocação num serviço melhor ou se continua fazendo bico pra se manter...

Depois do depoimento do Jurandir, tive de admitir — e nenhum dos outros poetas contestou — que a explicação do Odorico não esgotava o assunto, mas que dispensava um monte de literatura especializada, dispensava.

GLAUCO MATTOSO
Poeta, letrista, ficcionista e humorista. Seus poemas, livros e canções podem ser visitados nos sítios oficiais:

http://sites.uol.com.br/glaucomattoso

http://sites.uol.com.br/formattoso
 

« Voltar