GLAUCOMATOPÉIA [#65]


JUGO CONJUGAL


SONETO 247

Aqui só vai ser eu quem manda e gosta!
Você, que é menos macho, acate ou morra.
A sua esposa engole a minha porra;
Você bebe meu mijo e come a bosta.

Ninguém mandou você perder a aposta.
Agora pague o pato, aceite a zorra!
Mulher pra mim não passa de cachorra;
O macho cai de quatro ou cai de costa.

Comigo não tem dó nem piedade.
Aquele que não faz o que eu exijo
ou morre ou apodrece atrás da grade.

Não sou da lei, mas meu regime é rijo:
Casal é puta e corno, meu cumpade.
A fêmea engole a gala e o macho o mijo.


SONETO 248

Não faça isso comigo, por favor!
Honrado sempre fui, mas não de briga.
A minha esposa vai chupar sua viga,
mas eu não sou mictório ou cagador!

Perdi porque não sou bom jogador.
Não basta a sorte má que me castiga?
Agora inda sou vítima da intriga
que aquela doida faz de mim, Doutor!

É pelo amor de Deus que lhe suplico!
Fazer um cara honrado beber mijo,
sabendo que a mulher já paga o mico,

É dose! De pensar eu já me aflijo!
Lhe imploro, não me faça de penico,
pois ela lhe dará mais regozijo!


SONETO 249

Estou desesperada, mas, no fundo,
aquilo já esperava acontecer.
Marido como o meu tinha que ser,
um dia, lambe-cu de vagabundo.

Perdeu, e me tornou mulher do mundo
na mão dum parasita do poder,
que, agora, minha boca vai foder,
e a dele encher com algo mais imundo.

Bem feito para mim, pior pro corno.
Vou ter que chupar rola de folgado,
mas meu marido sofre mais transtorno:

Na boca ele é mijado, até cagado,
e ainda vai pagar um bom suborno
pra não cair na mão do delegado!


Os três sonetos acima me vieram depois duns saraus de que participei, cujo tema era o maniqueísmo na literatura e a dupla personalidade dos personagens. Claro que o ponto de partida foi O ESTRANHO CASO DO DR. JEKYLL E MR. HYDE de Robert Louis Stevenson, novela mais conhecida como O MÉDICO E O MONSTRO, mas o ponto de chegada podia ser a obra de cada um dos participantes. A certa altura o papo enveredou pelos triângulos amorosos e pelo caráter pirandeliano de certos tipos. Mas nem o contista paulista Carlos Carneiro Lobo, engenhoso autor das HISTÓRIAS MAL CONTADAS, nem o poeta mineiro José Maria Travassos, vivido coadjuvante
de escabrosos casos eróticos, nem qualquer outro literato presente exemplificou a pauta com um relato mais ilustrativo da relatividade das
reputações que o testemunho de Daniel, balconista da farmácia ao lado e meu confidente mais ciente das fofocas venenosas do quarteirão. Enquanto ainda enaltecíamos o mestre dos pretextos e das aparências que enganam, Daniel pediu modestamente a palavra:

— Não discuto que Pirandello seja genial, mas tem muito personagem procurando autor e que não foi procurado pelo Pirandello.

— Aqui no bairro mesmo, aposto...

— Claro, Glauco! Tá ironizando por quê? Você sabe que a arte não consegue imitar a vida quando o negócio é sadismo ou sacanagem, não
sabe? Nenhum escritor retrataria certas realidades, e se retratasse seria acusado de invencionice.

— Tem algum exemplo que o ceguinho aqui ainda não conheça?

— Tenho. Querem ouvir?

Todos se dispuseram, e mais uma vez sabatinei o Dani Daninho para que fosse aprovado com distinção e louvor:

— Lembra, Glauco, daquele vendedor de loteria que passava aqui na rua?

— Tá falando do Nestor?

— Não, falo dum brancão que trabalhou na área antes dele. Um tal de Olegário, acho que você não conheceu. Mas enquanto ainda não vendia bilhete, esse cara esteve bem melhor de vida. Recolhia dinheiro do bicho nos vários pontos, contabilizava tudo e repassava pro chefão do território, que na época era o Guilherme Taveira.

— Desse eu já ouvi falar. Sujeito sinistro, com fama de sanguinário. É verdade que foi torturador do DOI-CODI?

— Pelo menos é o que falavam. Mas o fato é que, além de vários outros departamentos da jogatina e do cambismo, o Olegário tava na equipe do Taveira e faturava bem. Até comprou apê naquele prédio chique com sacada, que você tanto cobiça...

— Aquele onde mora o Tolentino?

— Ali mesmo. E a sorte do cara não parou nisso: conseguiu casar com uma doninha que era o sonho erótico de muito galã garanhão por aí: a Diná, que o pessoal da padoca chamava de Diná Angorá.

— Acho que já vi essa fulana na época em que trabalhei no banco. Quando ela entrava na agência, os colegas e clientes até paravam o que estavam fazendo só pra olhar os movimentos dela... Tinha uns cabelos bem pretos e uns olhos pintados que chamavam mesmo a atenção, sem falar nas ancas... Até comentei com um amigo que, se fosse hetero, eu ia ter fantasias masturbatórias com ela... Só pode ser a mesma Diná, nossa correntista "preferencial"... Mas do marido ninguém sabia, nunca vi o cara.

— Ele era bem discreto, incapaz de qualquer baixaria. Podia ser trambiqueiro, mas não era adepto da violência. Por ironia, foi esse o motivo de não ter reagido quando cobiçavam a Diná, mas também por isso sobreviveu pra se manter com as loterias... Foi uma puta decadência, mas pelo menos saiu inteiro da jogada.

— Mas qualquer um cobiçava a Diná. Reagir de que jeito? Só se o cara saísse matando a torto e a direito.

— Cobiçar de longe é uma coisa. Tomar na marra é bem diferente. No caso da Diná, não foi uma coisa nem outra: foi confiscada pra resgatar uma dívida.

— Como assim? A mulher tava penhorada?

— Não tava, mas acabou servindo de moeda. Foi assim: o padrão de vida do Olegário ia subindo, os gastos aumentando, e teve uma hora que ele lançou mão da grana a ser entregue pro Taveira. Durante um tempo a coisa foi tratada como "empréstimo", mas o Taveira não era homem de muita paciência e logo encostou o Olegário na parede: ou paga ou... Aí Taveira foi criativo. Em vez de eliminar o devedor como qualquer rato de esgoto, ofereceu ao rato uma chance: caso não tivesse a grana devida dentro do prazo extra, entregaria sua gata pro cachorrão. Só que a entrega não seria uma simples transferência de patrimônio, teria que ser uma cerimônia particular onde o rato ia chafurdar ainda mais no esgoto e a gata ia virar cadela, um na frente do outro. Ou Olegário topava aquela animalidade, ou deixava o convívio dos humanos. E você que é cego sabe, Glauco, como o ser humano é capaz de se adaptar a qualquer fenômeno da natureza, não sabe?

— Se sei! Mas que foi que o Olegário fez de tão fenomenal?

— Uma pequena inversão fisiológica nos hábitos alimentares. O preço foi comer a merda e beber o mijo do Taveira, na mesma sessão em que a Diná fosse fodida pelo bicheiro. E tudo considerado como um favor especial, um privilégio que o Taveira tava concedendo! A primeira atitude do casal foi tentar escapar, sumir de circulação, viajar sem paradeiro, largar tudo. Mas foi só perceber que seus passos estavam sendo vigiados por capangas do Taveira, e Olegário se convenceu de que era inútil querer passar a perna naquela máfia. Pra surpresa dele, foi a própria Diná quem tomou a iniciativa de aceitar o sacrifício, coisa de que Olegário queria poupá-la a todo custo. Ele preferia se encontrar a sós com o Taveira, se sujeitar à baixaria sem a presença dela, pra que seu vexame fosse menor e mais suportável. Faria de tudo, pediria novo prazo, venderia o apê, trabalharia de graça... Mas cadê que o banqueiro do bicho abriria mão daquela buceta e daquela boquinha de pétala de rosa? Não, a boca do Olegário ia servir de penico, mas a da Diná era indispensável como punheta. Vencido o prazo, saíram os dois escoltados por três guarda-costas e foram levados pra fortaleza do Taveira em Atibaia. Antes de perder a Diná pro chefão, Olegário teve de aguardar até a hora em que Taveira costumava ir à privada. Em vez de fazer no vaso, o cara fez numa bandeja de prata especialmente preparada. O cocozão foi servido ainda quentinho, na sala, e, enquanto Diná se sentava ao lado de Taveira, Olegário recebeu ordem pra ajoelhar na frente da mesa de centro e comer com garfo e faca, como se fosse uma cafta... Você acredita que, quando o Taveira começou a dar gargalhada da cara de nojo do Olegário, a Diná também caiu na risada? Ficaram os dois se divertindo com o sufoco do coitado! Ele chegava a boca perto do tolete, via o "molho" da "lingüiça" formando aquela pocinha em volta, sentia o cheiro e recuava. "Vamos lá, coragem, homem! Que é isso? Não vai me dizer que a merda do patrão não lhe apetece!", brincava o Taveira, e o subalterno prendia a respiração, partia mais uma fatiazinha com a faca, espetava o naco no garfo e levava à boca, tremendo até quase derrubar no chão. Fechava os olhos na hora de empurrar a rodela pra dentro dos lábios, e depois se contraía todo, querendo engolir rápido, mas o chefe interrompia a concentração dele: "Calma, sem pressa! Mastiga bem! Mostra a língua, deixa eu ver! Isso, nada de engolir inteiro, que faz mal! Vamos lá, de novo! Mais um pedacinho!" E Diná soltava sua risadinha estridente, acompanhando o dono da festa. Quando Olegário começou a tossir e bater no peito, Taveira achou que era hora da bebida pra ajudar a descer a refeição. Levantou do sofá, pegou a jarra de cristal de cima da mesa e, tirando o pau da braguilha, mijou dentro. Recolocou na bandeja e mandou que Olegário enchesse o cálice e ainda brindasse ao chefe e à esposa antes de beber. Sei lá, Glauco, mas, pra quem acaba de engolir merda a seco, um gole de mijo ainda espumando até que não parece o pior dos refrescos, hem? O Taveira nem se deu ao trabalho de pôr o pau pra dentro: Diná teve que começar a chupar ali mesmo, enquanto o marido terminava de tomar o mijo, bebericando bem devagarinho, esvaziando o cálice e enchendo de novo, várias vezes. Pra ela foi até um alívio ter de mamar naquela rola ainda pingando em vez de repartir a janta com o corno. Tratou de puxar o saco do chefe e deu o máximo de si, já convencida de que não ia mais fazer aquilo no próprio Olegário. E não deu outra: o marido foi levado de volta ao apê (que logo depois seria vendido pra pagar outras dívidas), enquanto a Diná ia curtir umas férias com Taveira na praia. Na volta, ela só passou no bairro pra se despedir do coitado. Sabe o que a danada falou na cara dele? "Olha, Olé, o Guilherme me disse que fez aquilo só porque teve pena de você..."

— Pena? Porra, imagine se não tivesse!

— Mas foi isso mesmo, Glauco! O Taveira não dava colher de chá pra ninguém, mas como o Olegário tinha sido um funcionário leal durante tanto tempo, o jeito foi improvisar um castigo diferente, só pra não parecer bonzinho demais perante a máfia toda. Foi a solução mais "moral", de acordo com as palavras do bicheiro, que Diná repetiu ao já ex-marido. Mais cruel ainda foi a explicação da própria Diná pra ter colaborado tão descontraída com as vontades do Taveira: "Mas meu bem, que queria que eu fizesse? Não vê que salvei sua vida? Se não fosse por bem, eu iria na marra e você ia pro saco! Tive que facilitar as coisas, e continuo tendo, já que agora estou à disposição dele... Você, não: comeu cocô, bebeu xixi, mas já gargarejou e agora só lembra do gosto se quiser..."

— E o Olegário? Qual foi a desculpa que arranjou pra livrar a cara daquela bosta toda?

— Também acha que evitou um duplo assassinato, naquela de "vão-se os anéis...", mas a gente sabe que nada apaga um borrão desses na
reputação, mesmo que o cara faça de tudo pra manter o caso em segredo ou, pelo menos, no terreno do boato sem fundamento.

— E como foi que você descobriu que o boato tinha fundo? Não pode ter sido o Olegário quem lhe contou...

— Lógico que não. Foi um capanga do Taveira, um dos guarda-costas que ficaram de vigia na varanda da mansão na hora em que o rato mastigava e a gata lambia.

Carlos e Zé Maria, que, como os demais, ouviram o caso sem apartear, concordaram no final que pra tudo existe justificativa quando nenhuma aparência tem qualquer salvação. E voltamos todos aos contos mais amenos de Pirandello, enquanto nos servíamos dum bolo de chocolate regado a suco de maracujá.

GLAUCO MATTOSO
Poeta, letrista, ficcionista e humorista. Seus poemas, livros e canções podem ser visitados nos sítios oficiais:

http://sites.uol.com.br/glaucomattoso

http://sites.uol.com.br/formattoso
 

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