GLAUCOMATOPÉIA [#66]
A SEMENTE SEMITA
SONETO 118
Por meio de Isaías, Deus garante
(está em quarenta e nove, vinte e três)
triunfo do Judeu sobre outros reis,
que escravos lhe serão dali por diante.
Submissos a Sião, terão semblante
prostrado em terra, aos pés de quem lhes fez
passar maior vergonha e sordidez:
lamber o pó que suja o hebreu pisante.
Assim será o futuro de Sião,
segundo o testemunho de Isaías:
gentios e nações render-se-ão.
E a mais particular das profecias
é minha, do profeta sem visão:
"Teus pés lamberei já, Judeu." Sabias?
O soneto acima me veio quando reencontrei o bruxo argentino Alessandro Melasor, que voltava a morar no Brasil após uma temporada em Turim, onde vivem seus pais. Na verdade Melasor não é argentino nem italiano, já que se considera um judeu errante. Além da cabala e outras especialidades ocultistas, cultiva a fotografia como arte e como "investimento", visto que, segundo ele, suas fotos podem ter boa cotação no mercado futuro. Fazia bom tempo que não nos falávamos. A última vez tinha sido lá pelos oitenta, nem me lembro o ano. O que lembro bem é das fotos que me mostrou, pois naquela ocasião eu enxergava o suficiente para gravar na memória qualquer cena de humilhação flagrada em detalhe. No caso, as fotos não foram tiradas por Alessandro, mas por um colega israelense chamado Samuel Kaptor, que lhas presenteara quando o bruxo o visitava em Jerusalém. Recordo o papo que tivemos enquanto eu estava sob o impacto daquelas fotos:
— Alê, eu nem acredito no que estou vendo! Não me diga que o Kaptor teve coragem de expor isso, e logo em Jerusalém!
— Nem todas. Esta e esta, por exemplo, não estavam na exposição. Esta aqui saiu na imprensa pelo mundo todo. Até a VEJA usou pra ilustrar uma matéria sobre prisioneiros palestinos torturados pela polícia israelense, mas o agente do Shin Bet só aparece do pé até o ombro. A revista corta a foto na altura do pescoço, pra não mostrar a cara dele rindo. Você chegou a ver?
— Eu até guardei aquela página no meu arquivo de recortes, a cena não ia me escapar. Mas você disse agente do quê?
— Shin Bet. É um serviço de segurança, uma espécie de polícia secreta. Você vê que o sujeito não usa farda, tá de roupa bem esportiva. A cara dele não é mostrada justamente pra que a identidade do agente ficasse preservada, mas também pra escapar do escândalo...
Na foto, um robusto rapaz à paisana posa orgulhosamente pisando no pescoço dum adolescente palestino prostrado, cujo rosto está voltado para a câmera. Percebe-se, pela cara de medo e pela posição da cabeça, que a vítima recebe ordens, mandada olhar para cá ou para lá, ficar nesta ou naquela posição, enquanto o pé do policial a subjuga e a máquina vai registrando. A mão do moleque tenta impedir que o enorme tênis pressione seu rosto, mas nas demais fotos a sola cobre-lhe a boca, deixando aparecer apenas os olhos assustados, ou então, noutro flagrante, a boca só é focada quando a língua se projeta para fora, forçada a lamber o tênis agressor.
— Isso deve ter aumentado a revolta dos palestinos, hem Alê? Como é que o Kaptor se posiciona nesse conflito?
— Ele não tá nem aí. Você não leu na VEJA o que ele falou? "Se você quer viver seguro dominando um milhão e meio de árabes, alguém tem que fazer o serviço sujo", alguma coisa assim. Esse negócio já vem fedendo e não é de agora. Pros palestinos o Shin Bet é uma verdadeira Gestapo, essas fotos são só um detalhe da orientação que os agentes recebem. Eles sempre põem o pé na cara de quem é pego nesses patrulhamentos noturnos.
— Como assim? As instruções são pra pisar de propósito? Quem foi que disse?
— O Samuel. O agente que posava contou pra ele. Acontece que na cultura islâmica a sola ofende muito mais que na nossa. Até sentar mostrando a sola do sapato é um gesto ofensivo, quanto mais pisar na cara de alguém!
— Mas por quê os israelenses têm interesse em humilhar tanto? Isso não serve só pra agravar o ódio?
— Ah, mas e a demonstração de força? E o efeito psicológico? Imagine a vergonha desses palestinos depois de serem pisados, e imagine o medo de quem ainda não foi pisado...
— Então ser fotografado é a vergonha das vergonhas! Foi bem cruel o Kaptor nessa sessão, hem Alê? O moleque ficou sem saber onde enfiar a cara, agora que o mundo inteiro ficou sabendo onde teve que enfiar...
— O Samuel se diverte à beça, e ainda por cima fatura com as fotos. Até já comentei com ele aquela profecia do Isaías sobre o domínio de Israel... mas ele acha aquilo tudo um sarro, diz que não leva a sério.
— Qual profecia? Aquela que localizei no Velho Testamento?
— Isso. Onde foi mesmo?
— Isaías, capítulo 49, versículo 23. Li tantas vezes que até decorei: "...Reis serão os teus aios, e rainhas as tuas amas; diante de ti se inclinarão com o rosto em terra e lamberão o pó dos teus pés..." Não sei das versões hebraicas, mas acho que entram em mais pormenores...
— Pode apostar. Sabe, Glauco, acho que eu e o Samuel somos daqueles poucos judeus que não gostam de ficar posando de coitadinhos da humanidade, de perseguidos, de escapos do genocídio... Pra mim a vocação do judeu é de dominar mesmo, e não tem conversa. Entre nós se assume isso e se pratica, mas em público a maioria finge que se preocupa com a igualdade racial, com os direitos humanos, e tal. Eu não preciso salvar as aparências, meu negócio é desvendar os poderes ocultos, você me conhece, Glauco. E nesse campo não tem demagogia, os iluminados são os reis que têm um olho e estão por cima da ralé cega, você sabe.
— Se sei! O sadomasoquismo pode ser um jogo de livre arbítrio e mútuo consentimento, onde cabe até a troca de papéis, mas diante dum judeu não resta qualquer dúvida: quando foi ele a vítima, estava no papel errado; quando for ele o carrasco, sempre vai estar no seu verdadeiro papel. Pogrom, Holocausto, Intifada, é tudo acidente de percurso -- desastre de percurso, pra ser mais exato. Mas a profecia de Isaías é a correção da rota, o rumo certo, o destino final e fatal.
— Você reconhece isso porque é um masoca incorrigível, Glauco, mas não dá pra comentar abertamente a coisa, já que a humanidade não tá preparada pra se conformar sem escândalo, nem a cultura judaica pra se aproveitar sem escrúpulo. Isso leva tempo. Mas por falar nesse seu masoquismo, você já chegou a cumprir a profecia, Glauco?
— Só uma vez. Lambi o pó do pé dum judeu, se é isso que você pergunta.
— E como foi?
— Era um colega de trabalho. Funcionário novo na tesouraria, sem experiência. Fui encarregado de passar o serviço pra ele e supervisionar até que pegasse prática. Ele chegava a suar de nervoso quando contava dinheiro vivo e fazia somas na calculadora. No fim do expediente, quando o saldo batia, virava pra mim com aquele olho azulíssimo brilhando e abria um sorrisão de alívio, quase babando de gosto. Antes de completar uma semana, o fechamento dele deu diferença. Não era o maior dos desfalques, mas, pra quem ainda nem recebeu o primeiro salário, dói na carteira. Que fiz eu? Cobri do meu bolso e disse a ele que não tivesse pressa em me pagar. Claro que ele nunca mais tocou no assunto, até que, meses depois, perguntei se as contas estavam batendo. Ele me olhou feio e desconversei, convidando prum jantar na cantina mais próxima. Por minha conta, lógico. Entre a salada e a massa, levantamos os copos e fiz um brinde ao futuro dele, ao sucesso no emprego e ao azul da conta bancária. Aí falei:
"Um dia você vai ser meu patrão, Nata, e pra mim vai ser uma honra se eu puder engraxar seu sapato..."
"Ah, Glauco, quando eu contratar você não vai ser pra isso..."
"Eu sei. Pra isso eu nem tenho que ser pago. Faço por obrigação, né?"
"Você é que tá dizendo. Obrigação por quê?"
"Porque não sou judeu."
"Não topo brincadeira com essas coisas, Glauco. Se você é gay não pode ser racista..."
"E se você não é gay pode se dar ao luxo de ser racista, Nata. Só que o inferior aqui sou eu, pra que negar?"
"Eu me considero seu amigo, só isso. Mas se você quiser se humilhar o problema é seu."
"Você não teria coragem de me humilhar?"
"Não só teria coragem como não teria culpa. Já humilhei outros viados, mas não eram amigos."
"E se eu dissesse que sonho com isso?"
"Nesse caso vai ter sua chance de provar que sabe ficar por baixo."
— E o Natanael abriu aquele sorrisão baboso de menino mimado, tão doce, tão magnético, que até disfarçava o narigão e desviava por um momento a atração que o azul dos olhos dele causava na gente. Dali fomos pro meu apê e brindamos de novo, desta vez a todo o povo judeu espalhado pelo mundo. Depois ele se recostou no sofá, meio tonto pelo vinho e pelo licor, e ficou olhando com aquele olhão azul enquanto eu me sentava no tapete, segurava a perna dele e apoiava seu sapato no meu joelho, bem na altura da boca. Deixei que ele apreciasse a engraxada e fiquei lustrando o couro com a língua, sem pressa, abrindo os olhos de vez em quando pra conferir a expressão dele, o sorriso, o azul brilhando. Um êxtase que permaneceu nos lábios e nas pupilas do Natanael o tempo todo, até depois que eu já tinha engolido a porra que fluía daquela glande tão bem circuncidada. Enquanto passava a língua na volta toda, sentindo a pele lisinha como se o prepúcio nunca tivesse existido, não pude deixar de me comparar e me desmerecer. Até minha circuncisão não tinha uma tal perfeição, meu pau trazia a cicatriz irregular da cirurgia apressada, feita junto com uma operação de varicocele, pra aproveitar a anestesia... Quando ele se despedia, ainda achei palavras pra dizer que sua porra era mais preciosa que o licor ou o vinho, já que a chance de repetir a dose seria mínima.
"Nem tanto, Glauco, se você não for insistente. Deixa que eu decido quando vou querer, e você vai ter outras oportunidades, certo?"
"Como você quiser... patrão."
Ele arreganhou o sorrisão. Ser chamado a sério de "patrão" era um sonho que muito breve se realizaria na vida do Natanael. O meu já estava
realizado. Por um momento, fiquei no lucro. Ao contabilizar esse balanço no papo com Alessandro, ganhei também um sorrisão do bruxo:
— Se você fosse judeu, Glauco, os sábios de Sião que se cuidassem! Teriam que lhe pedir licença...
E caímos os dois na gargalhada.
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