GLAUCOMATOPÉIA [#69]


TRIPÉ DO TRIPÚDIO


SONETO 569

Não há cena mais forte (ou humilhante)
que um pênis penetrando a boca esquiva
em barba emoldurada, antes altiva,
agora coagida ao coito. Diante

dos lábios bigodudos é gigante
o membro do invasor! Não há saliva
capaz de umedecer uma lasciva
maçã que contra a língua se levante!

A boca se deforma, se arredonda;
o rosto os traços crispa, os olhos cerra;
da barba escorre a baba, a náusea ronda

o fundo da garganta, onde se enterra
a glande! E sem dar chance que responda,
gargalha orgasmo quem ganhou a guerra!


O soneto acima me veio por antecipação da ofensiva de Bush no Iraque, sendo a imagem do bigode obviamente alusiva a Saddam Hussein, extensiva a qualquer iraquiano à mercê do exército vencedor — cena que se confirmou, depois dos episódios verificados na prisão de Abu Ghraib, bem mais explicitamente do que eu podia prefigurar no momento de compor os versos.

Mas a barba me remete, inevitavelmente, à fisionomia que durante anos mantive enquanto enxergava. Estávamos na década da redemocratização, quando as diversas "especificidades" reivindicavam espaço: mulheres, negros, homossexuais, deficientes... e todos estes componentes integram o flagrante autobiográfico aqui resgatado. Minha deficiência visual ainda não era impeditiva das atividades literárias, ao passo que minha homossexualidade foi determinante num caso envolvendo um negro e uma mulher, completando-se destarte o quadro "pluralista" típico daqueles anos.

Foi assim: junto a um grupo de poetas "marginais", participava eu dum evento performático no Bixiga. O bar era freqüentado pelos carnavalescos da escola cuja quadra ficava na mesma rua. A batucada rolava ali como num ensaio rotineiro, e os poetas aproveitavam os intervalos para improvisar seu recital no mais espontâneo estilo "coloquialista". Tendo concluído meu número, tomei lugar numa das mesas vagas, para molhar a garganta e acompanhar o samba. Um colega de caneta veio se sentar comigo, mas logo saiu para conversar com alguma poetisa, que então gostava de ser qualificada como "uma poeta". Voltei a ficar na minha, atento aos batuqueiros e ao som, quando me toquei que uma das mulatas da platéia não tirava os olhos (e que olhos!) de cima de mim. No ato passei mentalmente em revista a cara que meu espelho tinha registrado na hora de sair de casa: barba e cabelo cheios, óculos minúsculos de armação quadradinha, camisa vermelha xadrez e corrente no pescoço — assim era a efígie sob a qual apareço nas fotos daquela época, em que a moda entre intelectuais se identificava com o perfil dum urbanizado ex-guerrilheiro que, por sua vez, podia ser confundido com um politizado ex-hippie.

Se à noite todos os gatos são pardos, ali a maioria era parda no duro, inclusive as gatas. E se eu não seria o único branco, talvez fosse o
mais longilíneo e hirsuto. O fato é que a mulatona me olhava e sorria (e que boca!): sorri de volta, gentilmente, e, tão logo outro amigo ocupou e desocupou a cadeira à minha frente, ela veio puxar papo.

— Posso sentar aqui?

— À vontade!

— Você declamou bem! Esses livros são seus? Posso ver?

Ao dar com o desenho fálico numa das capas, ela se assanhou.

— Nem li e já gostei! (acho que era uma antropófaga oswaldiana) Queria conhecer melhor. A obra e o autor.

— Mas é bom não misturar as duas coisas.

— Onde tem mais sacanagem? No livro ou no poeta?

— O livro é mais sacana, mas o poeta é mais gay.

— Ah, é? (como se dissesse: "Que pena!")

Não reparei que, de longe, um crioulo de cara fechada e lábios grossíssimos nos observava; nem deu para concluir se a mulata sabia que o rapaz estava de olho.

— Você tá vendendo o livro? Eu queria um...

— Não, eu trouxe poucos. Mas pode ficar com esse.

— Presente? Oba! Posso pagar com um beijo?

Sem esperar que eu aceitasse, ela se levantou, beijou-me quase na boca e se despediu, saindo rápido ao encontro dum grupinho que se dirigia para a quadra. O crioulo não teve dúvidas: chegou, abancou-se quase pulando na cadeira e foi direto ao ponto.

— Aquela que tava sentada aqui é namorada minha, sabia?

Senti o bafo e o drama, mas meu trunfo estava no papo, valendo o trocadilho. Confiei no astral e arrisquei as fichas.

— Se você pensou que eu tava paquerando ela, se enganou.

— Não, eu sei que ela é que tava paquerando. Toda vez que a gente briga ela faz assim, pra me deixar com raiva. Como você não é daqui (entendi que dizia: "Você não tem nossa cor!") é bom ficar esperto, cara.

— Pode ficar descansado. Comigo você não tem motivo pra se preocupar. Eu sou gay.

— Tá me gozando? Você não tem jeito de gay...

— Falo sério. Sou tão franco que, pra abrir o jogo duma vez, confesso que queria estar no lugar dela pra poder chupar seu pau.

O negão me encarou como se fosse me esmurrar, mas sua corda vaidosa vibrou com tanta intensidade que ele não pôde conter um risinho de orgulho. Ainda quis confirmar minha sinceridade na inveja:

— Se você estiver de gozação vai se arrepender, cara!

— Pode acreditar! Eu chuparia seu pau agora, se você quisesse! E digo mais: seria a chupeta mais caprichada que eu faria na vida!

Eu praticamente cochichava, mas minhas palavras pareciam gritar no ouvido do rapagão. Ele custava a crer que um branco literato se dispusesse a pagar tal tributo à sua masculinidade ofendida.

— Agora você me provocou. E se eu quiser que você chupe mesmo?

— A hora que você quiser. Eu estou à sua disposição.

Só então me dei conta de que o pau dele podia estar tão duro quanto o meu. Ele parecia decidido:

— Moro aqui do lado. Vamos pra lá... (a reticência tanto podia ser uma interrogação como uma exclamação imperativa)

— Tudo bem. Só vou avisar uns amigos que volto logo. Já venho.

Deixei o recado e acompanhei o crioulo até o cortiço vizinho, onde ele tinha um quarto. Até que não era tão precário aquele alojamento: além da cama desarrumada e do guarda-roupa velho e pesadão, sobrava espaço para um banco de carro à guisa de sofá e para umas prateleiras onde se amontoavam tralhas de tudo quanto era tipo, exceto livros. Mal entrei, e meu nariz tentou distinguir algum chulé no ar abafado, mas outros cheiros se fundiam, frustrando minha expectativa. Mesmo assim não me escapou à vista o par de tênis, junto com os chinelos, piscando para mim debaixo da cama.

Antes de chegarmos ao quarto, passamos pelo banheiro coletivo, onde ele teve que parar para aliviar a bexiga. Ficou meio sem graça por não ter conseguido segurar o aperto, talvez achando que eu pudesse ter algum nojo, mas tratei de tranqüilizá-lo:

— Não precisa nem balançar. Deixa que eu limpo o resto.

Ele caiu na gargalhada, descontraído e definitivamente triunfante. Dali para diante ficou bem à vontade. Fez questão de permanecer em pé, para que eu tivesse de ajoelhar, e nem se deu ao trabalho de baixar as calças. O cacete que saía pela braguilha desabotoada já era suficientemente longo e grosso para que minha língua tivesse bastante trabalho, sem ter que cuidar do saco e das virilhas.

Concentrei-me, então, em mostrar ao machão ciumento que minha palavra de homem valia alguma coisa. Segurei naquele lingüição torto com respeitosa delicadeza. Fui arregaçando a cabeçorra e me assustei com a quantidade de esmegma que dormia sob o prepúcio. Seria possível que uma tal mulata assanhada se sujeitasse a lamber aquilo? Só se ela fosse tão masoca quanto eu me sentia na cena! Ele só esperava para ver se eu assumiria a responsabilidade da tarefa. Quando sentiu que minha língua aparava as últimas gotas de urina e começava a remover a crosta de sebo, soltou um "Ah!" bem fundo e passou a verbalizar abusos que eram música aos meus
ouvidos ávidos:

— Aê, seu trouxa! E agora? Tá sentindo o gosto? Agora vai ter que dar conta! Tá pensando o quê? Mulher minha não sai por aí beijando macho, não! Ela tá pensando que beija e fica por isso mesmo? Agora você é que vai beijar no biquinho, seu trouxa! Ainda faço aquela cadela chupar sem reclamar! Vai, chupa, quero ver seu capricho agora!

Vendo que seria impossível satisfazer-lhe o anseio de penetrar como numa vagina ou num reto, já que minha boca só comportava a grande glande, recorri a um estratagema que, calculei por intuição, a mulata não praticava, pois provavelmente chupava com sofreguidão: mamei com a maior suavidade, esfregando de leve os lábios e passando a língua debaixo do meato a cada movimento de vai-vem, salivando abundantemente a fim de amaciar ao máximo a sucção. O resultado foi automático: nem bem ele gemeu mais acelerado, tirei o pau da boca e conservei os lábios abertos, fazendo com a língua uma ponte sob a glande, para que ele pudesse contemplar as golfadas saindo da uretra e entrando na garganta, o jato formando compridos canudinhos brancos que desapareciam dentro da cavidade oral. Aquilo deve ter sido um espetáculo que o crioulo jamais esquecerá. No final ainda limpei tudo com a língua e terminei de secar a poder de beijos na volta toda da chapeleta. O rapaz ainda resfolegava entre risos convulsos quando me abaixei e depositei-lhe um último beijo no bico do sapato. Voltei à posição genuflexa e ergui o olhar até seu rosto radiante e triunfal. Ele me contemplou de cima e tripudiou:

— Viu só? Agora você sabe por que a Zoraide não me troca por ninguém! Ela briga mas volta!

Voltamos ao bar, onde meus amigos me aguardavam para a saideira do sarau. Já na porta, na hora em que nos preparávamos para deixar o local, avistei o crioulo contando vantagem para um dos batuqueiros junto ao balcão, e fui ter com ele a fim de oferecer um exemplar do outro livro, não daquele com que a Zoraide havia sido brindada. Meio surpreso, o rapaz se disse muito agradecido e, depois que eu já tinha virado as costas, veio atrás de mim e bateu-me no ombro apenas para dizer:

— Ah, só mais uma coisa: gostei daquele beijo que você deu no meu pé!

Nunca mais tive oportunidade de render a outro crioulo a homenagem que com tamanha desinibição dediquei àquele enciumado caralho, mas em compensação não costuma ser tão raro que um invasor seja rechaçado numa guerra de conquista. Estão lá o Iraque e o Vietnam para me respaldar...

GLAUCO MATTOSO
Poeta, letrista, ficcionista e humorista. Seus poemas, livros e canções podem ser visitados nos sítios oficiais:

http://sites.uol.com.br/glaucomattoso

http://sites.uol.com.br/formattoso
 

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