GLAUCOMATOPÉIA [#70]
O MICHÊ BICHADO
SONETO 505
Mais serve ao cavalheiro do que à dama.
Mais jovem aparenta que o cliente.
Mais másculo se diz do que se sente.
Quer ser mais que um garoto de programa.
Nem tudo que combina faz na cama.
Se dá não quer. Se come não é quente.
Se chupa não engole. Se o diz, mente.
No par sempre é mamado. No bar, mama.
Seu pênis é mais canto que instrumento.
Seu tênis é maior do que seu pé.
Seu riso é menos gozo que lamento.
Aluga o que não tem e o que não é.
Mas cobra a fantasia e, ciumento,
"Amor!" espera ouvir, pago ao café.
O soneto acima me veio ao lembrar dum raro episódio entre mim e um rapaz de aluguel. No começo dos 80 ainda não grassava a paranóia da AIDS ou da criminalidade, de sorte que se podia perambular à noite pelas avenidas do centro velho, coisa que eu costumava fazer nas adjacências da praça da República, entre os restaurantes do Arouche e os teatros da Roosevelt. Nos fundos do colégio Caetano de Campos, onde começa a rua São Luís, a calçada fronteira a uns prédios neoclássicos é bem larga e ali ficava um ponto que não era só de ônibus: a maioria dos que esperavam estava era no aguardo dum outro tipo de táxi, ou seja, o taxi-boy.
Mesmo sem tantos riscos de contágio ou violência, sempre tive ojeriza a sair com michês, fosse pelo bolso, fosse pelo gozo duvidoso. Até que a idéia de poder cheirar e lamber à vontade uns tênis e pés fedidos era coisa tentadora, mas a fantasia logo broxava diante da certeza de que tudo no rapaz era fingimento, até o chulé, que podia ser lavado ou deslavado conforme a preferência do cliente.
Naquela noite perdi um pouco da prevenção contra a classe dos prostitutos. Fiquei parado no ponto, como de hábito, apenas observando a
"pegação" dos outros. Nunca tive cara de pau suficiente para abordar um estranho na calçada ou para ser receptivo a uma abordagem, pois meu ambiente de encontros era a palavra escrita antes de qualquer papo ao vivo. Mas ver e ouvir a transação dos transeuntes tornava-se uma atração à parte, que me instigava a curiosidade -- e eu ficava por mais de hora ali, encostado à fachada do prédio, enquanto bichas e michês se misturavam aos esporádicos passantes e passageiros que embarcavam e desembarcavam, lotando coletivos cada vez mais demorados, à medida que a noite avançava.
Um rapaz de aspecto suburbano parou do meu lado, trocou uns olhares e puxou conversa. Respondi com indiferença, para mostrar desinteresse, e ele foi abordar um tipo grisalho que fingia esperar condução junto ao meio-fio. De onde estava pude ouvir o papo, já que o michê falava alto o bastante para que sua propaganda fosse aproveitada por mais de um consumidor ao mesmo tempo. Digo propaganda porque o carinha apregoava seu peixe como um camelô, repetindo os mesmos bordões: que queria saber as horas, que já passava do prazo tolerável para o encontro marcado entre ele e uma hipotética mulher, que aquela puta iria ver só, que ele ia fazê-la chupar gostoso, que lhe comeria o cu e a buceta, que meteria pela frente, por trás e também na boca, que mandaria lamber-lhe os pés...
Quando escutei voz de "lamber meu pé", fiquei ouriçado. Apurei o ouvido e, como o tipo grisalho não deu trela ao garoto, este voltou na minha direção. Desta vez sorri convidativamente, de modo que ele se sentiu animado a repetir seu repertório: a mulher que o deixara na mão pagaria caro, seria fodida em todos os buracos, porque ele gostava de foder de todas as maneiras, mas agora já passava da hora e ela não viria mais...
— Escutei você dizendo que ia fazer aquela cadela lamber seu pé. Você já fez isso?
— Ah, se fiz! Teve que lamber no vão dos dedos, teve que chupar o dedão...
E mostrava a bota surrada, aproveitando para lembrar que precisava comprar uma nova mas estava sem grana. Nesse instante ocorreu-me a idéia de convidá-lo para jantar. Assim eu poderia, sem necessidade de tratar transas, usufruir maiores pormenores daquele mercador de desejos. Cansado de bater perna, frustrado pela escassez de clientes e esfomeado havia horas, o michezinho topou de cara. Fomos a uma lanchonete, paguei-lhe um apetitoso prato de fritada regado a chope escuro com direito a bis, e Jair desembuchou algumas historinhas dentre as quais pincei a que me pareceu menos fantasiosa e mais biográfica.
— E quando foi a última vez que você fez um cara lamber seu pé?
— Ah, não faz muito tempo. Acho que foi mês passado. Era um alemão enorme, que passou de carro no Trianon.
— Alemão mesmo?
— Tinha cara, mas não tinha sotaque de gringo. Me levou pro hotel, ali na Augusta. Pagou só pra tirar meu tênis com a boca e chupar meu pé...
— Mas já rolou alguma cena igual com alguém que não tivesse pedido isso?
— Bom... Teve um lance quando eu tava começando nessa vida, logo que cheguei do interior. Eu era office-boy dum despachante e fui entregar documentos na casa dum jornalista. Um colega de escritório já tinha me contado que o cara era gay e pagava pra chupar rola grande. Eu tava ganhando mal, devia pra uns e outros e precisava me virar. No interior eu já tinha transado por pouco troco, com um padre e um professor, mas sem acostumar. Dessa vez a oportunidade era mais profissional, aí me ofereci pro jornalista. Quando viu o tamanho do negócio ele ficou freguês. Eu ia lá todo sábado. O cara chupava feito um desesperado, até perdia o fôlego na hora que levava minha porra na goela, e gozava junto comigo. Nunca reclamou do cheiro da minha rola, nem quando tava mal lavada. Uma vez fez até questão de chupar logo depois que eu tinha mijado. Mas não é que o cara implicava com o cheiro do meu pé?
— Você tinha chulé forte?
— Só! Também, andando de tênis o dia inteiro! Ele me fazia descalçar na varanda e passar no chuveiro antes de transar. Queria que eu lavasse bem o pé mas não fazia questão do pau limpo, o safado! Um dia, quando eu já tinha outros clientes e tava de saco cheio daquela mania dele, dei um chega-pra-lá: ou ele parava de pegar no meu pé, ou eu não voltava mais. Aí ele quis engrossar, disse que meu chulé era insuportável, que exigia higiene... Então eu fiz pé firme e falei: "É pegar ou largar! Pra chupar meu pau você vai ter que cheirar meu pé! Quer saber? Vai ter que CHUPAR meu pé!"
— E ele cedeu fácil?
— Quis endurecer o jogo mas, quando eu já tava na porta pra sair, ele pediu por favor. Aí eu montei em cima. Teve que tirar meu tênis e a
meia, cheirou na marra e chupou cada dedo. Ainda levou uma solada na cara e, depois que gozei na boca dele, mandei calçar e amarrar o tênis. Dali em diante ele teve que cumprir aquela obrigação toda vez que eu aparecia lá!
— E ele acostumou? Parou de reclamar?
— Não deu tempo, porque larguei dele logo em seguida. Apareceu quem pagasse mais e cobrasse menos. O mais engraçado foi que ele chorou no telefone quando eu falei que não ia voltar. Disse que eu podia não acreditar, mas ele tava me amando...
— E você, não sentia nada por ele?
— Até senti, pra falar a verdade, mas nunca dei bandeira pra não perder moral. Só depois de ter cortado o compromisso é que me deu um pouco de saudade, mas aí eu já tava em outra. A vida continua, né?
— Cada um sabe onde lhe aperta o sapato. E hoje, você ainda tem o mesmo chulezinho?
— Não, agora uso aquele talco azedo. Mas se o freguês pede, paro de usar e fico sem trocar de meia...
— Perguntei por perguntar. Faz de conta que eu não curto chulé, certo?
— Cê que sabe. — e ele baixou os olhos no prato, dando-se por satisfeito com a saliva gasta na comida e na conversa.
Pelo visto, Jair tornou-se mais dócil e cordato a fim de ganhar a clientela. Afinal, birra e pirraça são coisas de criança, e ele já começava a perder aquele ar de garoto desamparado que os michês habitualmente ostentam. Já adquiria, então, um ar de marmanjo desamparado, coisa bem mais grave e deprimente. Quanto ao tal jornalista, por um momento cheguei a me comparar com o cara, mas afastei da mente a sugestão de pagar, seja para cheirar chulé, seja para amar a prestação. A relação custo-benefício não compensa o investimento monetário e emocional. Parece que o amor é como bicho de pé: incomoda, atrapalha a vida, precisa ser extirpado e, mesmo depois, continua coçando.
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