GLAUCOMATOPÉIA [#71]
O SEXAGENÁRIO SEDENTÁRIO
SONETO 738
O moço entregador da adega traz
naquela bicicleta um peso imenso.
Nalgum apartamento aguarda, tenso,
alguém que encomendou água com gás.
Gasosa é só pretexto. Do rapaz
o velho quer aquilo em que ora penso:
seu cheiro, seu suor que, em vez de lenço
ou banho, duma língua esponja faz.
O tênis detonado que pedala
defuma-se por dentro, e da cueca
que atrita no selim o odor trescala.
Após gratificado, na caneca
o beiço do moleque um gole estala,
e ali bebendo o velho se lambeca.
O soneto acima me veio após um episódio recente, porque tudo que me sucedeu depois de ter perdido a visão parece recente, uma vez que ainda não me adaptei à nova e crua realidade. Dediquei o soneto ao poeta potiguar Paulo Augusto, meu companheiro de geração na literatura e na militância gay, mas o poema alude a um personagem mais próximo, embora nada íntimo. Trata-se dum vizinho de quarteirão, o doutor Tolentino, como é conhecido, que vive sozinho num amplo apê de três quartos naquele prédio de sacadas onde sempre desejei morar mas nunca tive grana suficiente para sonhar com a compra de algum dos apês que vagam ali.
Não me adaptei, mas hoje convivo com a cegueira mais pacificamente que nos anos noventa, quando o impacto da desgraça me levou a sonetar desesperadamente, como no soneto "Perpétuo", em que me considero prisioneiro e condenado a chupar o pau do primeiro carcereiro (leia-se qualquer visita) que aparecesse. Com o passar do tempo, consegui me virar na vida prática, e o fantasma da solidão deixou de ser um pânico meramente material para se concentrar na carência afetiva. Já não era a incapacidade que me assustava, e sim a ociosidade, que a punheta talvez não fosse bastante para preencher.
Mas fui me punhetando e fantasiando as cenas com algum visitante ocasional. Na falta de companhia para dar uma volta na rua e passar na padaria ou no mercadinho, eu dependia quase sempre do entregador a domicílio. E para não fazer pedidos a toda hora, eu tinha de estocar os mantimentos de consumo mais freqüente. Houve época em que bebi mais cerveja de lata. Em outras fases consumi suco de caixinha. Naquele momento minha bebida favorita era a água mineral, que eu comprava em garrafinhas, umas dez a cada pedido. A adega mandava a encomenda por um molecão que vinha de bicicleta e nem sempre era o mesmo, já que nos cortiços da redondeza sobravam jovens desempregados e havia grande rotatividade nesse tipo de bico temporário.
Tocava o interfone e, como não havia ninguém comigo, pronto a descer até a portaria, o zelador estava prevenido para deixar subir o rapaz que trazia a água. Eu já tinha o dinheiro contado no bolso, e recebia o entregador pela porta da cozinha. Nem sempre o menino percebia que lidava com um cego. Quando eu avisava que não podia vê-lo, ele ficava meio sem jeito, a menos que não fosse sua primeira entrega comigo. Mas aconteceu que um desses garotões, ao invés de se constranger e balbuciar qualquer desculpa, riu quase gargalhando assim que me ouviu falar da deficiência. Fiz que interpretei seu gesto como um desembaraçado embaraço e procurei agir com naturalidade.
— Pode colocar aqui nesta mesa.
O molecão depositou a caixa de papelão sobre a toalha e eu apalpei com a ponta dos dedos para conferir a quantidade de garrafinhas tocando nas tampas. Eu podia adivinhar o sorriso do moleque me avaliando e seu olhar devassando o ambiente. Mas nem precisava adivinhar que ele estava suado, pois o cheiro era ardido.
— Pode conferir. O troco você guarda.
Ele pegou o dinheiro da minha mão, e senti seus dedos grossos e ásperos. Logo imaginei um crioulão forte.
— Obrigado. Posso usar seu banheiro?
— Claro. É aquela primeira porta, ali.
Apontei na direção da área de serviço. Ele entrou no banheirinho de empregada e nem encostou a porta. Escutei o jato de urina caindo no vaso. Jato grosso, que fazia o barulhão duma torneira aberta enchendo um balde. Demorou até que o meninão esvaziasse a bexiga, e ele parecia não ter pressa. Deixava sair pausadamente as últimas golfadas, depois as últimas gotas... E eu podia adivinhar aquela rola enorme sendo balançada, arregaçada, manuseada, acariciada... e guardada dentro do calção, manchando a cueca. Ou será que ele voltava à cozinha ainda segurando o pau para fora da braguilha? Não sei se era eu quem mais desejava esta última hipótese ou se o cara estava me transmitindo seu pensamento. Engoli em seco, mas ele telepaticamente entendeu meu silêncio como uma oportunidade para pedir um pouco d'água.
— Posso tomar da sua torneira?
— Não prefere gelada?
— Não, não. Da torneira mesmo. Vou pegar um copo daqui, tá?
—À vontade. O escorredor é à direita.
Eu apontava para a pia, mas ele ria porque já tinha avistado os copos e mexia neles antes que eu terminasse de falar. Encheu duas vezes, bebeu e deixou o copo sobre o mármore.
— Quando quiser é só pedir, tá?
Era ele quem falava, referindo-se à próxima encomenda, mas eu ia ficando agoniado por dentro, tentando me convencer de que aquela frase resfolegante e sorridente podia ter duplo sentido. Pela posição da minha cabeça ele podia, por sua vez, imaginar que, caso ainda enxergasse, eu estaria olhando fixamente para seus tênis imundos e deformados de tanto pedalar. Mas o tempo se escoava e, como ele tinha outras entregas a fazer, acabou o papo que mal havia começado e poderia ter um desfecho diferente. Quando ouvi a porta do elevador batendo e passei a chave na fechadura da entrada de serviço, senti o cheiro que vinha da privada. O danado não tinha dado a descarga! Fui até lá e, antes de apertar a válvula, não pude resistir e me ajoelhei na frente do vaso, para aspirar mais de perto aquele odor de mictório, sempre visualizando a rola gotejante e, quem sabe, semi-ereta. A minha estava totalmente dura, mas segurei a punheta até que matasse minha própria sede e fosse para o outro banheiro, onde confortavelmente tomaria uma ducha depois de gozar. Nisso apalpei na pia o copo deixado pelo marmanjo. Levei-o ao nariz. Ainda guardava o hálito de dente podre. Cheirei de novo antes de lamber a beira do copo. Depois me saciei na torneira e fui aliviar o tesão no chuveiro.
Quando voltei a encomendar água mineral, já não era aquele o entregador, e a cena não teve seqüência. Bom tempo depois, conversando com o balconista da farmácia (que também é gay e com quem troco umas fofoquinhas picantes), toquei no assunto e Daniel reagiu sem surpresa:
— Ah, já sei! Era o Alemão!
— Alemão? O moleque não é crioulo?
— Se for quem eu tô pensando, não. É um loirão safado, que ri por qualquer motivo, né?
— Bom, rir ele ria mesmo. Achei que tava até tirando sarro do ceguinho...
—É ele mesmo. O cara não perdoa nada. Sabe o doutor Tolentino, aquele sessentão?
— Aquela "tia" que mora no prédio chique?
— O próprio. Pois esse Alemão fez gato e sapato dele!
— Jura? Quem contou?
— O Tolentino mesmo, ora! Não vê que eu sou o padre confessor da bicharada aqui no pedaço?
— Quase me esquecia... Mas então desembuche, viado de Deus! Quero saber tudo!
— Pois então! O velho também encomenda da adega e, quando viu a cara e o corpão do novo entregador, ficou com água na boca, sem trocadilho. Sabe que o moleque é tão safado que, mal deu de cara com o velho, sacou que era devoto da santa causa?
— E precisa ter malícia pra perceber a bichice do Tolentino?
— Dependendo da pessoa, ele sabe disfarçar. Mas nesse caso deu a maior bandeira, e o bofinho, aliás bofão, não se fez de rogado. Pediu pra usar o banheiro, do mesmo jeito que fez com você, deixando a porta aberta. O Tolentino ficou espiando ele mijar e, quando acabou, o Alemão virou de frente pro velho e balançou a rola sem parar de rir. Tolentino não se agüentou: perguntou se o cara queria ganhar uma gorjeta especial. "Que que eu tenho de fazer?", perguntou o Alemão. "Só deixar que eu faça...", respondeu o velho, todo babão. "Então faça!", disse o moleque, pondo as mãos na cintura e deixando o pau pendurado pra fora da calça. O velho nem piscou: ajoelhou na frente do chouriço e bebericou as gotinhas na ponta da cabeça, depois beijou de língua na pele meio arregaçada (ele me contou que a pele era tão carnuda que parecia um lábio), depois punhetou o garoto com a boca até jorrar mingau pra encher meio prato. Tolentino falou que o pau nem tava muito duro, mas era tão comprido que, mesmo durante o boquete, continuou dobrado pra baixo, e era tão grosso que o beiço do velho ficou dolorido, de tanto que esticou...
— Coitado do Tolentino! Quanto sacrifício, né?
— Ai, me deu pena! A gente bem que podia fazer uma vaquinha pra ajudar a pagar a gorjeta do Alemão, não acha, Glauco?
— Mas ele continua indo lá no apê do velho? Na adega eu sei que não trabalha mais...
— Não, sumiu. Diz o Tolentino que viu o moleque lá no supermercado, descarregando aquelas caixonas pesadas. Será que lá as gorjetas são maiores?
— Vai ver que sim... Talvez até uma gratificação do gerente...
— Mas o Tolentino não perde tempo. Outro dia vi o velho cumprimentando na rua um entregador de pizza, que passava de moto acenando. Parece que a popularidade do velho continua em alta...
— Olha, Daniel, pode até ser. Mas não é que ele seja tão popular: a gente é que deixa passar a chance de ficar famoso...
E voltei para casa pensando na próxima punheta, cuja fantasia agora seria completa, já que eu podia imaginar o que ficou faltando na punheta anterior.
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