GLAUCOMATOPÉIA [#72]

ESTATURA DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

SONETO 771

Se um deles se mexer, um outro agride-o.
São três na mesma cama, e o pé na cara,
fedido, é inevitável, como para
menores recolhidos num presídio.

Colchão no chão é duro, mas divide-o
o trio adolescente. Alguém sonhara
cenário tão propício a quem tem tara
podólatra, mal visto inda no vídeo?

O rosto do pivete rela a sola
sem arco do mais velho. A senha é dada
num leve cutucão. A boca cola

na pele salgadinha e chupa cada
artelho de unha grande. A mão controla
o pênis, retardando uma esporrada.


O soneto acima me veio depois dum papo com Daniel, o balconista da farmácia, com quem me ponho a par das fofocas do quarteirão. Foi ele quem me contou por que o neto da jornaleira anda sumido: esteve preso e passou uma temporada na FEBEM. Não nego que a notícia me pegou de surpresa.

— Sério? O moleque até que tinha um sotaque meio malaco, mas eu achava que era modismo da nova geração... Quer dizer que ele é mesmo bandidinho?

— Bandidão! Você não sabe o tamanho dele! Se a periculosidade fosse tão alta quanto a estatura...

— Outro dia ainda brincava com a molecadinha...

— Pois é, Glauco, parece que os adolescentes estão crescendo mais rápido que o nosso pau...

-- Ora, Daniel, não seja autocrítico! Vamos, que foi que o menino fez pra ser internado?

— Começou roubando a própria avó. Você sabe que a Zefa é viúva faz tempo, né? O marido não deixou nada, a velha só tem aquela banquinha pra sobreviver. Revista sai pouco, de modo que é quase que só jornal o que ela vende. Ela costumava deixar o Vaguinho tomando conta da banca enquanto ia entregar jornal nos prédios do quarteirão, e acabou descobrindo que volta e meia faltava algum trocado. Pra ela cada moeda faz falta, e na hora de fazer as contas dava uma diferencinha cada vez maior, sempre que o Vaguinho tinha estado na função de caixa...

— Quando foi isso?

— Ah, tem uns anos, o Vaguinho inda calçava uns trinta e nove. Hoje deve estar calçando quarenta e três, quase quarenta e quatro, pra usar seu método de cálculo...

— Tava demorando pra você me provocar, né? Só falta você me contar que o pivete tem pé chato e o dedão mais curto... Mas não vamos mudar de assunto, pelo menos por enquanto. Continuando o caso do Vaguinho, aliás Vagão...

— Então: vivia passando a mão nos trocados da Zefa e, linguaruda como ela é, toda hora se escutava o maior bate-boca ali na esquina da padoca, antes de fechar a banca. Ela xingando ele de ladrão e ele xingando ela de mão-de-vaca. Uma vez peguei quando ela saía pra entregar jornal e avisava o Vaguinho: "Veja lá se não vai pegar dinheiro de novo, hem?" O respondão não deixou por menos: "Agora é que eu pego mesmo!" E na cara dela tirou da gaveta uma nota de cinco e enfiou no bolso. A velha ficou tiririca! Partiu pra cima do moleque e foi tapa daqui, empurrão dali... jornal caído no chão... o pessoal da padoca tendo que sair pra apartar... um sururu! Dali a uns dias já não vi mais o Vaguinho trabalhando na banca. O Nestor, aquele crioulo aposentado que vendia bilhete de loteria, estava ali dando uma mãozinha pra Zefa enquanto ela saía. Ela vive se queixando da vida com todo mundo, de modo que ninguém ligou muito quando ela falava que o Vaguinho andava com os malacos do cortição, que tava mexendo com droga, que ainda ia acabar preso ou morto. A gente achava que ela exagerava tudo, só pra impressionar...

— Não era ela quem tinha espalhado que o Tolentino foi pego chupando o pau do vigia daquele prédio em construção?

— É mesmo, foi ela que me contou...

— No fim foi o próprio velho que confirmou tudo pra você, não foi? O Tolentino se faz de senhor respeitável mas é tão escroto como... eu ou você, certo? Então acho que a Zefa nunca exagerou. O problema é que ela dramatiza muito e a gente acaba enjoando da novela...

-- O fato é que o Vaguinho tava mesmo metido com sujeira. Sabe como a Zefa tomou conhecimento da prisão dele? No próprio jornal que ela mais vendia! Tava lá, na primeira página: Wagner de Tal, detido por participar dum arrastão...

— Como assim? O jornal não pode dar nome de menor...

— Mas deu, porque pensaram que ele já tinha dezoito, um rolo que a Zefa não soube explicar. Quando apuraram a idade dele, levaram pra FEBEM e ficaram transferindo de cá pra lá, de modo que a velha já nem sabia mais em qual unidade ele estava. Passa mais um tempo, e de repente quem me aparece aqui na farmácia procurando uns comprimidinhos fortes? Quem? O Wagner de Tal, agora sim, mais maior do que nunca, ou, como diria você, calçando quarenta e quatro.

— Você é que tá falando, Daniel. Eu nunca tive a chance de medir o pezão do menino, infelizmente. Mas e aí? O Vaguinho confirmou a versão da Zefa?

— Não só confirmou como detalhou coisas da FEBEM que a própria Zefa não contaria, se soubesse. Imagine, Glauco, que puseram o moleque numa cela tão lotada que não tinha espaço pra todo mundo dormir! De noite a molecada repartia os poucos colchonetes que cobriam o chão.Dormir é modo de dizer, porque ninguém descansa direito naquela aglomeração, muito menos do jeito que ficavam deitados. Como não tinha colchão nem espaço suficiente, em cada cama cabiam dois e até três pivetes, em posição de valete. Aqui é que a coisa fica curiosa pra você, Glauco! Já pensou? Aquela molecada suada de jogar bola no sol durante o dia, sem banho, tirando o tênis na hora de dormir e deitando, um com o pé na cara do outro?

— Vou deixar pra pensar em casa. Agora conte o resto, seu torturador sádico!

— Acontece que o Vaguinho já me conhecia, sabia que sou gay, até já tinha me provocado, mas, como sei que ele queria grana pra transar, fiz que não tenho tesão por garoto. Mesmo assim ele sempre se abriu comigo nesses assuntos. Foi por isso que me animei a perguntar desses detalhes. Ele confessou que dividiu a cama com um assassino perigoso e teve de jurar que obedecia pra evitar problema. Sabe o que o marginal mandava fazer? Além do pau, Vaguinho teve que chupar o pé do cara!

— Na frente dos outros?

— Aí é que tá: o pau ele chupou de dia, fora da cela, num canto escondido qualquer, mas o pé era ali no colchonete. Disse que, por causa da posição, mal podiam se mexer, mas rolava muita chupação de pés. Uns faziam por gosto, outros na marra, mas o chulé era igual pra todos...

— Daniel, você não está inventando...

— Se alguém inventou foi o Vaguinho. Disse até que tinha gente que vivia carregando os tênis dos mais mandões pra todo lado. Amarravam os dois pés pelo cadarço e penduravam no pescoço, andando com aquele charmoso cachecol pra lá e pra cá, enquanto o dono do tênis tava de chinelo ou descalço, às vezes praticando algum esporte, ou usando outro pisante. Sei lá. Mas que o Vaguinho encarou a lancha, encarou. Disse que o outro gozava, às vezes na punheta, às vezes na mão do próprio Vaguinho, conforme a vontade do momento.

-- Ninguém reagia? Ninguém recusava?

-- Alguma briga sempre rola, mas os monitores entram logo no meio se escutarem barulho, e aí o castigo é geral. Por isso eles evitam qualquer acerto de contas no dormitório. O pé na cara já é um aviso pra não reagir, dependendo da força ou do poder do outro. Acho que é um tipo de acordo tácito, um pacto de silêncio noturno, vamos dizer.

— Mas o Vaguinho não tinha força pra se impor? Ou era só tamanho?

— Sabe, Glauco, o menino tem jeito de bruto mas só é valente com a avó. Acho até que tem tendência pra virar um gay tão passivo ou tão enrustido como qualquer um de nós... Sempre a velha história, né? Menino órfão... Alguém vai dizer que é carência, más companhias, falta de escola, de acompanhamento psicológico, coisa e tal... Só que na prática o corpão não evitava que o moleque fosse abusado.

— E o pé do Vaguinho? Também não ficava na cara do outro?

— Aqui é que entra o lado mais curioso. Vaguinho acabou abrindo o jogo. Contou que o cara fingia que não gostava, que desviava o rosto, e tal, mas bem que ficava relando o nariz quando achava que o Vaguinho tinha pegado no sono. Até que, uma vez, mandou que o Vaguinho ficasse quieto enquanto ele lambia no vão dos dedos. Vaguinho disse que sentiu cócegas mas deixou, porque o outro mandava...

— Por que não reconhece que deixou porque tava gostoso? Que mania de não dar o braço a torcer! Quer dizer, o pé...

— E você, Glauco, torceria o pezão dele?

— Se ele não me deixasse lamber eu mordia!

Saí da farmácia mordido de desejo e fui bengalando, lentamente, até dobrar a esquina da padaria e alcançar a grade do meu prédio, onde o porteiro me avistou e veio ajudar a subir os degraus da entrada. Daniel sempre se oferecia para me acompanhar, mas eu preferia percorrer sozinho aquela curta distância, a fim de não desaprender a usar a bengala. No caminho, passei pela banca da Zefa, que naquele momento se despedia dum freguês, e cumprimentei:

— Boa tarde, dona Zefa! Tudo indo?

— Indo mal, né, meu filho?

— Eu que o diga! E o Vaguinho? Nunca mais apareceu?

— Ele que nem apareça, que me faz um favor! O que tem de tamanho tem de malandragem! Se você soubesse...

— Outra hora a senhora me conta, tá? Tenho que fazer uma coisa urgente!

— Vai com Deus, meu filho!

Zefa riu descontraída, pensando que meu aperto era talvez intestinal. Coitada da velhinha! Parece tão maliciosa mas é tão ingênua... Ou será que o inocente aqui sou eu?

GLAUCO MATTOSO
Poeta, letrista, ficcionista e humorista. Seus poemas, livros e canções podem ser visitados nos sítios oficiais:
http://sites.uol.com.br/glaucomattoso
http://sites.uol.com.br/formattoso
 

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