GLAUCOMATOPÉIA [#73]
AS SANDÁLIAS DA HUMILDADE
SONETO 739
Pedófilos, os padres na cristã
paixão do lava-pés buscam ensejo
de dar num descalcinho o casto beijo
sem perto estar de Sade ou de Satã.
Relembro um diretor, de infantes fã,
e a sola dos pupilos inda o vejo
beijar, no ardor de "Em nome do desejo",
a inquieta inquisição de Trevisan.
Na América, arcebispos massageiam
pezões de menininhos, cujo pênis
levanta se no artelho os saboreiam.
A Igreja os indeniza e os boys, indenes,
são anjos (que os ingênuos nisso creiam)
solteiros, solitários e solenes.
O soneto acima me veio quando fui apresentado a um poeta mineiro chamado José Maria Travassos, que tinha sido criado no Triângulo e costumava contar casos interessantes de vício vivido. Numa de suas visitas, enquanto Zé Maria ia fazendo um reconhecimento das lombadas na minha biblioteca, o assunto enveredou para a vocação pederasta dos padres, talvez porque ele passasse os olhos pela coleção do Eça de Queiroz.
— Então, Glauco? Você, que coleciona essas histórias de podolatria, já fez um estudo comparativo com a pedofilia dos padres?
— Ainda não juntei material suficiente. Mas meu interesse aumentou depois daquela onda de denúncias nos States. Lembro de pelo menos três casos em que o rapaz acusava o padre de ter acariciado seus pés antes de chupar a rola. Achei curioso como o detalhe da carícia marcou até mais que a própria chupada... Mas senti falta duma descrição mais concreta.
— Pra isso nem precisa ir longe: aqui mesmo rola coisa bem mais explícita.
— Inclusive coisa já bem registrada na literatura. Quer ver? Pegue nesta prateleira um romance do João Silvério Trevisan chamado EM NOME DO DESEJO. Achou?
— Achei.
— Abra na página marcada e leia o trecho anotado na margem.
Zé Maria leu no seu tom pausado e manso: "Quanto à masturbação, que continuava rigorosamente controlada, o Reitor assim se manifestava, em suas vistorias: 'Deixa eu ver os peitos. Eta, peito inchado. Masturbação demais, rapaz. Vê se toma jeito. Peito inchado em homem é feio.' Já o Diretor Espiritual era diferente: relacionava-se e cuidava dos seus Menores como se levitasse desde o início e os chamasse para o alto, consigo. Usava estratagemas poéticos: no caso da masturbação, amarrava fitinhas de várias cores no membro genital dos meninos mais reincidentes. As várias cores correspondiam à gravidade das fases masturbatórias. Para um controle que ele fazia pessoalmente e com rigor, obrigava os garotos a dar um nó na fitinha, a cada nova masturbação. Assim, acompanhava de perto a atividade pecaminosa dos pequenos, com muita imaginação. E se os punia, era para elevar-lhes o espírito. Se chegava a fazer carícias em seus orientados, tomava cuidado para não desassossegá-los interiormente. Apertava a mão de um, afagava o rosto de outro e até, vez por outra, chegava a toques que pareciam mais ousados. Nesses casos, tranqüilizava-os imediatamente com explicações convincentes. Aludia à frase que fizera inscrever no alto de sua porta: UBI CARITAS ET AMOR, DEUS IBI EST ('Onde houver caridade e amor, Deus aí estará'). Ou então colocava o menino recostado sobre seu joelho e lhe explicava com o jeito mais doce: 'Se existir verdadeira caridade entre nós dois, Deus estará conosco.' Quando, durante a direção espiritual, os garotos lhe contavam coisas escabrosas, colocava-os de joelhos em cima da cadeira ('para que, elevando-se, melhor peçam perdão a Deus'); e, enquanto rezavam, ele ia lhes tocando os pés com os lábios, delicadamente. E explicava: 'É em nome da misericórdia ao pecado que se repete aqui o gesto de amor de Cristo, na Última Ceia.' Aos poucos, esses seus toques labiais iam configurando beijos explícitos e jamais carentes de ternura, com os quais banhava os pés dos pequenos penitentes. A qualidade de suas relações com os orientados diversificava-se ainda mais daquelas do Reitor quando se considera certo teor francamente lúdico que as compunha."
— Que tal? Quem foi seminarista sabe que essas coisas rolam mesmo, com maior ou menor grau de fantasia.
— Acho isto até poético, Glauco. A história que eu ia lhe contar é um pouco diferente, mas tem a ver. Que é autêntica eu garanto, porque participei dos fatos.
— Não me diga que você também foi menino do padre!
— Você sabe que não fui santo. Teve época em que precisei fugir de Uberlândia pra não ser preso. Mas na adolescência toda a minha turma já tinha passado pela mão do padre Túlio, ou antes, o padre Túlio já tinha passado a mão na cabeça de nós todos.
— Com que idade?
— A molecada variava dos dez aos quinze. O padre era daqueles com mania de "Vinde a mim..." e a criançada vivia rodeando o cara. Minha turma era mais barra-pesada e o Túlio não se arriscava a tentar alguma intimidade maior com a gente. Preferia os mais pó-de-arroz, que os pais obrigavam a freqüentar a missa, fazer primeira comunhão, ter aula de catecismo, e tal. A gente sabia, pelos buchichos no meio da molecada, que o Túlio se metia com este ou aquele, mas nem o Abobrão, que liderava minha gangue, sabia dizer com certeza qual era a do padre, já que ninguém tinha flagrado ninguém no ato.
— Como assim? Não sabiam quem chupava quem?
— Pois é. Tinha quem jurasse que o Túlio chupava. Outros achavam que os preferidos dele eram justamente os mais delicadinhos, mais fáceis de serem fodidos.
— E se fossem as duas coisas?
— Seria o mais provável. Mas o que deixava o Abobrão invocado era o jeito como o Túlio mimava o Beto. A gente chamava o moleque de Beto Beato porque era o queridinho da paróquia. Mesmo sem ser coroinha nem nada, não saía da igreja e tava sempre dando uma mãozinha pro padre. Talvez um pezinho também. Um dia o Abobrão juntou a patota e falou que ia tirar a limpo aquela história. Resolvemos dar uma prensa no Beto e ficamos vigiando os passos dele. Até que cercamos o danadinho quando voltava da casa paroquial. Cortamos o caminho dele quando passava pelo predião em construção. Beto quis correr, mas segurei por trás e o Abobrão mostrou aquele canivete de cabo de osso que era seu xodó. "Se não quiser sair furado, não abre a boca e vem com a gente." Levamos o Beto pro porão do prédio. A obra tava parada e ninguém descia lá. Beto fez cara de choro e foi avisado: "Nada de frescura. A gente só vai terminar de fazer o que o padre começou, tá sabendo? Mas antes você vai ter que contar o que foi que o Túlio já fez..." Beto quis enrolar, repetiu aquela conversa do padre a respeito do lava-pés, da humildade de Jesus dando o exemplo e beijando o pé dos apóstolos, da Madalena lavando o pé de Jesus, e tal. Levou um tapão na orelha. "E a outra face? O Túlio não te ensinou a dar a outra face?" Beto pedia pelo amor de Deus. "Vai ter que ajoelhar! Que negócio é esse de implorar em pé?" Beto caiu de joelho e ficou de mãos postas como quem reza. Todo mundo riu da cena, mas o Abobrão curtia demais: "Conta aí, que foi que o Túlio fez com você? Vai falando!" "Beijou meu pé..." "Beijou como?" "Sentei no banco e ele deitou no chão..." "Que mais?" "Depois foi subindo e me chupou..." "E você gozou?" "Gozei..." "E ele engoliu?" "Antes mostrou na língua. Disse que pra ele era que nem hóstia..." "E você, recebeu a hóstia, também?" "Não. Ele sempre falou que tava dando prova de humildade, que era ele que tinha que se humilhar..." Quando Abobrão achou que já sabia o bastante, lascou outro tapa na cara do Beto e a gente caiu de novo na risada, vendo o moleque ali de joelho, sem desfazer a pose de oração, mesmo levando porrada. Aí o Abobrão mandou: "Agora quem vai dar prova de humildade é você! Vamos ver se aprendeu direitinho a lição do padre! Começa beijando meu pé!" Abobrão usava aquela sandália de dedo, tipo havaiana, o pé vivia encardido. Beto teve que desjuntar as mãos pra se apoiar no chão. Quando começou a beijar, recebeu ordem pra lamber, pra chupar os dedos, enquanto nós íamos pisando nas costas dele, dando chute na bunda. Depois que sujou bastante a língua na poeira do pé da turma, teve que levar rola na boca. Glauco, acho que em todas as missas o Beto não comungou tanto quanto a porra que engoliu naquela tarde!
— E nas outras tardes?
— Não precisou. O Abobrão achou que a lição tava de bom tamanho. Aliás, o Beto nunca mais andou sozinho em lugar deserto. Não sei se contou alguma coisa pro Túlio, mas se contou foi mais um segredinho que ficou entre os dois. A gente até espalhou o caso, mas a molecada já tava acostumada com os buchichos e deu desconto, como pra qualquer boato. Já o Beato não perdeu nem ganhou fama, mais do que já tinha...
— Se fosse hoje, talvez esse padre Túlio passasse por um pequeno calvário...
— Pode crer!
E passamos, Zé Maria e eu, o resto da noite lendo e comentando acerca da impunidade dos sacerdotes sacanas no tempo do Sade e do Bocage, comparado aos quais o padre Túlio bem que poderia ser canonizado.
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