GLAUCOMATOPÉIA [#74]

O QUICHUTE DO QUICHUA

SONETO 926

Em cada artelho um calo seu formato
altera. Unha encravada causa inchaço
no mínimo e no médio. Manca o passo
de dor, que aumenta o aperto no sapato.

Dizer que aquele pé seria chato
é pouco: se na sola os olhos passo,
tão reta me parece, que não faço
nenhuma distinção dum pé de pato.

O grande artelho dos demais se aparta
e tem no comprimento só a metade
do dedo "indicador". Catinga é farta

nos vãos, onde a frieira está à vontade.
Tal pé serve-me à língua e, se a descarta,
podólatra não acha que lhe agrade.


O soneto acima me veio depois que peguei o Nelo de veneta e cobrei dele o caso que me pisa no calo desde criança: saber se mais alguém sente atração por um pé chato igual àquele do moleque que abusara de mim quando eu tinha meus nove anos e a turminha dele uns onze. Não um mero pé chato, claro, mas um daquele tipo espalhado, cujo dedão é bem separado do segundo artelho, e bem mais curto. Já vi tal formato sendo chamado de "grego" ou de "egípcio", mas o rótulo se refere ao menor comprimento do dedão, não necessariamente ao arco caído. Os podólogos, podiatras e ortopedistas ainda me devem uma nomenclatura que enquadre especificamente a chatura combinada com o dedão anão e o largo vão. Mas se venho procurando um pé desses desde que fui seviciado por aquele pivete, mais curioso fico em descobrir se outros podólatras tiveram mais chance que eu de cruzar com algo tão raro na anatomia do brasileiro. Dizem que os anglo-saxões são mais propensos a ter pés assim, mas meu contato é com os podólatras daqui, dos quais Nelo é sem dúvida o mais experiente e -- por que não dizer? -- calejado.

— Ah, Glauco, você sabe muito bem que pé chato não é "my cup of tea", como diriam lá na Inglaterra. Mas já pensei no seu caso. Não é a primeira vez que você me pergunta. Eu já não lhe contei a respeito daquele peruano?

— Peruano? Você me disse uma vez que tinha "feito" um pé como eu quero, mas só falou por alto, ficou devendo a história. Não falou de peruano nenhum, mas agora não me escapa.

— Deixe eu ver... São tantos casos... Ah, é verdade, foi um lance bem do seu gosto, Glauco. Enquanto for contando vou me lembrando... Isso já tem uns oito anos, foi quando eu morava no Bixiga. Bem atrás do meu prédio ficava um cortição que dava pra rua de baixo. Meu apê era no segundo andar e da janela dava pra ver e ouvir tudo que rolasse no quintal do cortiço. Toda hora tinha marmanjo aproveitando o sol pra se esticar, mostrando a solona descalça. Muitas punhetas matinais eu toquei assim, lambendo de longe aqueles pezões desocupados e desperdiçados...

— Tinha muito pé chato?

— Você tem razão, Glauco, de dizer que brasileiro não costuma ter pé chato. Meu olho é clínico e de longe pego os detalhes. Quase sempre o pé da rapaziada era arqueado e o dedão mais comprido que os outros dedos, mais "batatudo". Já os pés grandões, do jeito que eu gosto, sempre apareciam, ainda que pé grande também não seja o forte do brasileiro.

— Tamanho também é documento, bem lembrado. Gilberto Freyre que o diga. Ele foi quem mais estudou nosso pé pequeno...

— Mas não fez a pesquisa de campo que nem nós, né Glauco? Por falar em sociologia, é aqui que entra o peruano. Ele me chamou a atenção, antes que eu visse seu pé, por causa do papo que levava com outro malaco, bem na hora em que cheguei na janela. Estavam os dois sentados no pátio, de frente pra mim, de modo que tive que me esconder atrás da cortina. Mesmo assim deu pra escutar tudo direitinho. Ou eles se achavam impunes ou eram muito desligados, já que deviam ter mais cuidado pra comentar aquelas coisas...

— Que coisas?

— Roubo de carro. Ele e o outro eram dum bando especializado em arrombar qualquer coisa estacionada e repassar pros desmanches. Pois não é que o peruano me viu espiando?

— Mas você não tinha se protegido?

— Sim, mas quando eles se calaram pensei que tinham ido pra dentro e apareci na janela. Dei com ele me olhando direto, enquanto o outro já ia
saindo. Nunca esqueço aquela cara de índio me secando, aquele cabelo preto escorrido, a pele morenona, a boca de sapo e o olho meio puxado. A franja até dava um ar de moleque, mas o rosto maltratado e raivoso mostrava que o cara tinha perdido a meninice antes do tempo. Sorrir pra ele só fez que me encarasse com mais desconfiança. Vi que não ia dar aproximação e saí da janela. Mais tarde, quando voltei a me debruçar pra regar as plantas, o quintal tava ocupado pela molecada mais descontraída. Esqueci do índio, passaram uns dias, e de repente cruzo com ele na calçada. O cara vinha na minha direção, meio mancando, parou, como quem estivesse na dúvida se me reconhecia, mas me traí quando sorri de novo, automaticamente. Aí ele chegou perto e fez que me conhecia.

"Olá! 'Todo' bem?" (Ainda tinha um pouco de sotaque.)

"Tudo bem, vizinho, meu nome é Nelo, e o seu?" (Estendi a mão e ele apertou, sempre na defensiva.)

"Pablo. Você mora nesse edifício aí?"

"Isso mesmo. Vi você da janela, lembra?"

"Sim. Me 'escuchó' também, não?"

"Escutei, mas nem prestei atenção. O que eu queria era olhar..." (Ele percebeu que eu não tirava o olho do seu pé. Calçava botina de elástico, já deformada de tanto bater. Parece que tinha o pé largo demais, porque o couro tava torto pros lados, ainda que o tamanho fosse bastante pra caber um quarenta e quatro folgado no comprimento.)

"Melhor pra você não ter 'escuchado'. Mas... que é que olhava?"

"Agora estou vendo mais de perto. Acho que você tá precisando de sapato novo. Quer ganhar um par de tênis?"

"Por quê? Você tem sobrando? Mas não calça meu número..." (Pelo jeito ele também reparava no detalhe, apesar de que qualquer um perceberia que meu pé era bem menor.)

"Não, eu compro um novinho pra você, que tal? Em troca só quero uma coisa."

"Já sei, você gosta dum 'carajo', não gosta?" (A boca de sapo se abriu num riso sacana, mostrando a dentuça falhada e manchada de fumo.)

"Se for na boca, gosto. Mas o que mais quero é sua botina. Troca por uma nova, ou prefere tênis?"

— Ele fez cara de quem começava a entender. Pra ter certeza provocou:

"Vai ter que tirar você mesmo. Tem coragem?"

"Tenho até pra agüentar as conseqüências, no nariz e na boca. E você, já experimentou essa coceguinha?"

"No pé nunca. Mas você faz aqui também, senão nada feito." (Deu uma coçada na braguilha da calça de jeans.)

"Fechado. Garanto que você não vai esquecer da minha boca, Pablo."

— Toda a conversa rolou ali, quase na entrada do meu prédio. Marcamos a hora e no fim da tarde ele tocava o interfone. Era daqueles prédios sem porteiro, bastava comandar de dentro e a porta da rua destrancava sozinha.

— Você não achou arriscado abrir sua porta prum ladrão?

— Claro. Mas era um risco calculado. Só questão de cumplicidade, Glauco. Ele chegou trazendo alguma coisa numa sacola de supermercado e foi logo perguntando o que é que eu tinha escutado, e fui logo respondendo:

"Olha, Pablo, eu sei que você é puxador, mas não tenho nada com isso. Se você não estranha meu vício, eu não estranho seu negócio, e tamos conversados."

— Ele repuxou a boca de sapo e, vendo que eu reparava na sacola, tirou de dentro um par de chuteiras e explicou que, sem a botina, só sobrava aquilo pra calçar até que ganhasse o pisante novo. Aproveitou pra dizer que preferia levar a grana e comprar ele mesmo, no que concordei. A partir daí foi só hora do recreio. Acomodei o mestiço naquela poltrona capitonada que faz conjunto com a banqueta, uma que você já experimentou lá em casa, e avisei que o ritual levava um tempo, até que eu tivesse curtido todo o cheiro e saboreado todo o gosto. Ele não dizia nada, só entortava o beiço pra mostrar a dentuça banguela. Escarrapachou as pernas na banqueta, cada pé numa beirada, e comecei pelo esquerdo. A botina custou a sair, porque a meia tava grudada pelo suor. Glauco, você ia delirar com o chulezinho! Parecia uma lata de lixo destampada. Pablo usava meia de futebol, toda furada, que lembrava um trapo de chão. Descolei aquilo com a língua, depois de puxar com a mão, bem devagar, da canela até o calcanhar. Só então percebi por que ele mancava: o pezão era largo demais pra fôrma da bota, o calo e a unha encravada tinham virado parte da anatomia. Ah, precisava ver a cara de deleite dele enquanto eu dava um trato naqueles pontos doloridos! A sola também tava cheia de malacas, mas nunca vi uma tábua de bater carne tão plana como aquilo... Minha língua parecia uma esponja, esfregando pra lá e pra cá, até remover a camada toda de umidade e a crosta de sujeira. Banho é o termo certo pro que dei naquele pé, principalmente no meio dos dedos. Acho que o dedão tinha uns dois centímetros a menos que o "fura-bolo", era do jeito que você fantasia, Glauco. Claro que deixei aquele "mata-piolho" pra ser chupado por último, assim que a frieira do mindinho e as geléias de cada vão estivessem bem "higienizadas"... e quando meti na boca até achei que o dedão não era tão grande pro tamanho do pé. A explicação era aquela mesma: curto demais, diferente das batatonas que estou acostumado a mamar. E por falar em mamada, será que preciso entrar no departamento dos cheiros e queijos de pica?

— Não, Nelo, nem faço questão. Só quero ficar viajando nessa lancha, me mordendo de inveja...

— Então só falta falar um pouco da chuteira que Pablo tinha trazido. Era bem detonada, também, já que ele usava desde quando chegou no Brasil, sonhando ser jogador. Com aquele pé de pato, logo viu que a carreira esportiva tava fora de cogitação, mas a chuteira ficou guardada. Toda preta, lembrava aquelas de sola de borracha que a gente conhecia como "quichute", lembra?

-- E como? Eu vivia lambendo com os olhos as dos moleques que brincavam no campinho perto de casa... Mas essa é outra história. E as botinas do Pablo? Foram bem aproveitadas?

— Renderam pra mais de mês de punheta, daquele jeito que mais curto: uma no pau e outra na boca. Depois perderam o cheiro, o sinal de vida, e também a graça. Foram direto pro lixo, onde já deviam estar faz tempo. As meias também. Dei ao Pablo um par das minhas, fiquei com aquele meião pra ir cafungando nele durante as punhetas, mas a essência logo se evaporou, que nem alegria de pobre...

— Nelo, se você encontrar de novo com o Pablo, tem que me fazer um favor...

-- Nem precisa dizer. Claro que eu recomendaria seus préstimos. Mas vai ser difícil, tanto tempo depois que me mudei. Nem imagino se o cara ainda tá no Brasil, nem se tá vivo. Calcule, Glauco, essa malandragem é muito nômade, só tem endereço fixo quando passa uma temporada na cadeia...

— Eu sei, só estou devaneando. Não é proibido torcer, né?

— Só não dá pra torcer pelo Pablo vestindo camisa dalgum time.

— Dá sim, desde que eu fosse o massagista...

Nelo fez bilu-tetéia na minha bochecha e recomendou que eu chupasse meu próprio polegar. Da mão, bem entendido.

GLAUCO MATTOSO
Poeta, letrista, ficcionista e humorista. Seus poemas, livros e canções podem ser visitados nos sítios oficiais:
http://sites.uol.com.br/glaucomattoso
http://sites.uol.com.br/formattoso
 

« Voltar