GLAUCOMATOPÉIA [#75]
CANIL ESTUDANTIL
SONETO 647
Defronte aos acadêmicos vitrais,
enquanto outros calouros, na chegada,
dispunham-se a sofrer "ralo" e "chispada",
tratados como "bichos" e animais,
um deles, que deixara longe os pais,
não quis ser boi na farra e cão de cada
folgado veterano que lhe brada:
"De quatro! Late! O rabo! Abana mais!"
Escapa e se recusa, mas mais tarde,
sem vaga na república e sem clima,
de falso herói converte-se em covarde.
Já manso, a rebelar-se nem se anima.
Apenas cumpre, e lambe sem alarde
a sola do "doutor" que está por cima.
SONETO 648
Cantou Piracicaba inteira o caso
do "bicho" que do trote se esquivara.
Pouquíssimos, porém, sabem que o cara
agora abaixo está dum reco raso.
Embora uns tratem trote como atraso,
ou rito de passagem, ou só tara,
o fato é que nenhuma tese aclara
um tema envolto em cúmplice descaso.
Se alguém, como o tal "bicho", resistia
à idéia de engolir escarro ou mijo,
lavagem cerebral o anestesia.
Entendo-lhe o segredo, e não exijo
que queixe-se ou questione, já que um dia
será, como "doutor", tão duro e rijo.
SONETO 649
Recém-chegado, o "bicho" verifica
que vai passar por trotes humilhantes.
Aceito é na república, mas antes
será feito de cão, no que isso implica:
Andar de quatro e nu, solada e bica
levando a toda hora; ouvir rompantes
e gritos dos "doutores"; repugnantes
porções comer no chão qual ração rica.
Chinelos ao "doutor" levar na boca;
lamber-lhe os pés descalços e o sapato;
ganir de muita dor; graça, achar pouca.
Latir, abanar rabo e inda ser grato;
rosnar jamais; bem alto e com voz rouca
jurar que é "bicho" e escravo dum pé chato.
Os três sonetos acima me vieram na época em que o contista Carlos Carneiro Lobo relia em voz alta, durante suas semanais visitas, trechos das TRUE HOMOSEXUAL EXPERIENCES editadas por Winston Leyland na Gay Sunshine Press, reaproveitando o material recolhido pelo fanzineiro Boyd McDonald entre os leitores de seu zine STRAIGHT TO HELL. Quando as sessões de leitura chegaram ao volume que contém depoimentos sobre trote de calouros nas universidades norte-americanas, lembrei que já os tinha transcrito no ensaio histórico O CALVÁRIO DOS CARECAS. Dois daqueles relatos detiveram a atenção do autor de HISTÓRIAS MAL CONTADAS:
— Você reparou, Glauco, como os casos americanos parecem bem mais fortes que os brasileiros incluídos no seu livro? Estes dois contam coisas que só são parecidas com o que acontecia em Piracicaba, mas você quase não fala da Luiz de Queiroz...
— Não falo porque não consegui os detalhes. Eu sabia que na ESALQ a calourada era troteada com mais dureza que em qualquer outra faculdade, mas ninguém atendeu quando contatei as repúblicas pedindo depoimentos...
— Dá pra entender: ninguém quer se expor. Mas posso lhe garantir que as repúblicas da ESALQ são o cenário mais parecido com o duma "fraternity" americana. O mesmo ambiente de maçonaria, os mesmos rituais secretos, e ao mesmo tempo aquele clima de farra, de orgia, típico da molecada universitária que não leva a sério essas formalidades.
—- Você soube de algum caso igual aos americanos?
— Sei de um que me lembra estes aqui...
— Quais? Não quer reler?
— Tem este do gay enrustido que entrou pruma confraria só pra poder ser currado sem se comprometer:
"In 1965, I desperately wanted to join a college fraternity just for the opportunity to be disciplined, humiliated and put through 'Hell Week.' My interest in bondage/discipline as well as my homosexual interests could both be explored without appearing to be gay. I had heared lurid rumors of hazing and degradation during the '7 Days of Hell' and I wanted very much to be dominated. The fraternity was made up of 25 actives and 5 pledges. As a pledge, I was assigned to 5 actives. I was to do their bidding for the whole semester, provided that I passed Hell Week. During Hell Week the house was off-limits for outsiders; the actives had no dates or social outings. Instead, they played out their sexual fantasies on the 'slave' pledges. And indeed we were their slaves for the week. Blindfolds were issued and our clothes stripped. We were not allowed to stand and quite often our hands were tied. Only three hours of sleep was permitted each night. We could not use our hands when eating but were issued food in a bowl on the floor. Breakfast was always the same — we knelt at the urinals which had our breakfast, consisting of a pile of corn flakes liberally soaked with piss. The foul odor of the actives' early morning piss made us almost throw up. Paddling was administered until we finished. It was an unbelievable experience. Today, I still welcome that experience. The actives cut loose with loads of foul piss onto the corn flakes when our blindfolds were in place. We had 30 minutes to clean up every morcel of cereal and EVERY drop of piss. Verbal abuse also accompanied breakfast. Hell Week was long and tiresome. Our asses were red and sore. The final evening, Saturday, each pledge was put over a sawhorse and securely fastened. The blindfolds were put on again. A liberal amount of Vaseline was rubbed in each of the 5 assholes. I felt pressure on my asshole and just as I was ready to yell a cock was stuck down my throat. In an instant, I was being fucked by two of my brothers. As each climaxed and withdrew, another active took his place. After an hour we were released and with a formal ritual we were accepted into the fraternity. I had to do the bidding the remaining part of the semester for my 5 actives. But it was generally light chores, laundry, etc., with paddling once a week. No further sexual abuse was conducted. I never knew whose cocks fucked me during the initiations."
— Não me diga que em Piracicaba rolava coisa desse tipo!
— Não chegava a tanto, Glauco, mas não é a suruba final que conta aqui, é a comida servida no chão e os bichos comendo sem usar as mãos, fora o abuso sexual, óbvio. Repare agora neste outro caso, como a coisa se concentra na implicância entre um veterano e um calouro em particular:
"I am glad there is a publication which gives me the chance to tell of an experience I had as a pledge to a fraternity at Brown University. Before initiation we all had to spend some free hours each week working at the frat house — serving meals, cleaning and generally catering to the whims of Brothers. For any mistake we would 'assume the position' — bent over to get our asses whacked with the paddle. None of the members but one would paddle us on the bare ass so we wore heavy pants and several pairs of undershorts and the beatings were not so bad. But the one guy, Randy, was a mean bastard and would make us drop our pants and shorts and beat our naked tails till we yelled. He seemed to pick on me especially because I was taller than the others and than him. One night I was supposed to clean up supper dishes while everybody went out to some bash. When I thought they were all gone I grabbed a beer, which was forbidden, and sat down to watch television. Suddenly Randy came back. He caught me red-handed, called me a 'fucking sneak,' and told me to fetch the paddle. As I walked from the room he almost lifted me off the floor with the hardest kick in the ass Iever got. When I came back with the paddle I was scared shit. He told me to bare my ass and bend over. Then, did he ever blister my hind end with that paddle, I screamed and cried, begging for mercy. But he wouldn't stop. My ass went from pain to numbness, till I couldn't stand it and jumped away. We argued and he told me if I was chickenshit I could get the hell out and forget about the fraternity. I didn't want that or for him to get the best of me so I apologized and decided to take anything he dished out. He made me strip altogether and then marched me bareass upstairs, smacking my already sore behind all the way up. He tied me hand and foot on a bed and lit a candle. First he teased the soles of my feet with the flame, threatening to really burn them. They did burn once or twice and I let out a howl. He ran the lighted candle up my legs to my groin and set my cock hair on fire. He would put it out when the flames grew big but by the time he finished practically all my manly hair was singed to stubble. He turned me over and I thought he was going to tan my ass some more but instead he spread my hind cheeks and started dropping hot wax from the candle on my asshole. Many didn't hurt but a couple of real hot drops hit my sensitive tail pipe right on target and made me jump. At last he asked if I was ready to obey and I said yes so he untied me and made me get on my knees and take his cock in my mouth and suck on it. I was never so humiliated in my life. There were tears running down my face as he ground his hips and dug his prick deep into my throat. All the time he was calling me 'Cocksucker' and 'Fag' and saying 'Suck it, Mary.' The only thing I was spared was his coming in my mouth because I choked and gagged and turned red so he slapped my face and told me to get downstairs, put on my clothes and get back to work. On the way downstairs he booted my ass again and almost sent me sprawling. The initiation that came some weeks later was also a pretty bad time."
— Que é que você vê de comum nesses dois casos? Neste aqui a sessão de tortura e de sexo não é coletiva nem anônima como a bacanal da outra confraria.
— São detalhes, Glauco. Repare na obrigação de trabalhar como criado, lavando louça, fazendo faxina, e ao mesmo tempo a posição de animal, de quatro.
— Que é que tem? Isso é constante, os calouros sempre são tratados como bichos e têm que servir de escravos, não só na hora do sexo ou da brincadeira.
— É que foi justamente essa coincidência o ponto que marcou o trote daquele estudante da ESALQ. Ele entrou na agronomia na década de 70, em plena época da ditadura. Você mesmo observa no livro que o regime militar incentivava a arbitrariedade e a impunidade dos veteranos. Pois o caso dele dá mesmo essa impressão, de que não adiantava reagir nem denunciar.
— Você tem todos os detalhes? Dá pra lembrar?
— Dá, sim. Foi o próprio aluno quem me contou, e não escondeu nada. Vou tentar ser fiel. A república se chamava Agrurapura. Você sabe que lá todas as repúblicas têm nome e fama: uma é a Kantagalo, outra a Jacarepaguá, outra a Sobradão, e assim por diante. A Agrurapura tinha, como as outras, a tradição de "ralar" os bichos no auge do trote, quando começava o ano letivo, mas no dia-a-dia do meio do ano ninguém de fora imaginava como era a vida do calouro. Pois bem: o Otávio chegou a Piracicaba sabendo do folclore em torno dos trotes inaugurais, mas ignorando a rotina interna das repúblicas. Estava preparado pra passar pela fase pesada, igual àquela "semana infernal" das "fraternities", mas achava que o sacrifício acabava ali. Quis logo se enturmar com os "doutores" (como os veteranos querem ser chamados), e esse foi seu erro. Otávio vinha duma cidade menor, onde tinha morado com os pais numa casa enorme, com muitos cachorros no quintalzão. O casarão da Agrurapura também era espaçoso, com quintal, mas ninguém tinha tempo pra cuidar de cachorro. Otávio caiu na asneira de sugerir que a república adotasse um mascote, que ele se prontificava a criar. Ah, pra quê? Os veteranos simplesmente responderam: "Boa idéia! O cachorro vai ser você mesmo!" E a partir daquele dia o novato teve que se comportar como cão. Só na hora do estudo ou quando tivesse que sair ele podia ficar vestido como gente, andando e falando normalmente. Nas horas vagas, quando não estava escalado pra algum serviço doméstico, era obrigado a ficar de quatro, só de cueca e camiseta, às vezes sem nada, engatinhando pela casa ou amarrado por uma coleira, comendo no chão e só latindo em vez de falar. Esse tipo de "condicionamento" não era nenhuma novidade, já que todos os bichos passam por algo parecido durante os trotes, principalmente na hora das refeições. Como toda república, aquela tinha uma mesa tamanho família na sala de jantar e, quando os "doutores" se sentavam pra comer, sempre tinha um ou mais calouros servindo e outros de quatro no chão, catando com a boca os nacos que alguém jogasse. O mais comum era a "mastiguinha". Sabe o que é?
— Sei. O veterano enche a boca, às vezes mistura a comida com pão, com bebida, mas não engole: cospe a massa no chão e o bicho tem que abocanhar, terminar de mastigar e engolir. Já ouvi até meninas entrevistadas na TV, reclamando que aquilo era muito "escatológico"...
— Coitadas! Aquilo era o de menos. O nojo dos calouros era testado com coisas bem mais difíceis de pôr na boca... Mas vou chegar lá. Pois bem: o Otávio já tinha rastejado junto com outros bichos por baixo da mesa e já tinha saboreado todo tipo de "mastiguinha". Acontece que ele era bem mais corpulento que o resto da calourada, e de quatro parecia um fila comparado aos bassês. Quem mais implicava com isso era um veterano chamado de Sérgio Sergipano, sujeito baixinho e atarracado. Sérgio não tinha nada a ver com o estereótipo de "cabeça chata" que os maldosos atribuem ao nordestino, mas parece que se ressentia de não ter porte atlético, coisa que sobrava no físico do Otávio. Desde o começo passou a abusar dele com mais insistência. Suas "mastiguinhas" pro Otávio eram mais freqüentes, mais nojentas, mais volumosas, e sempre pisadas, pra que Otávio tivesse que abocanhar quase debaixo do chinelo do Sérgio. Ora, quando o garotão foi transformado em cachorro, Sérgio era quem mais "treinava" o mascote, fazendo latir no tom certo, abanar o rabo direitinho, apanhar coisas que ele jogava longe e trazer na boca, ir buscar chinelos ou tênis... tudo levando chutes e pisões, claro. Na frente dos outros "doutores" a coisa não ia muito além disso, até porque os outros também queriam brincar. Mas na primeira oportunidade em que ficaram a sós, Sérgio resolveu descontar no Otávio umas coisas que estavam guardadas. Foi assim: Otávio tinha aproveitado uma hora em que não ficava ninguém na casa, e tentava estudar um pouco, quando Sérgio chegou de surpresa e de propósito. Ouvindo a porta, deu tempo pra que Otávio voltasse correndo à posição de cachorro e ao seu lugar no canto da sala, mas o veterano estava decidido a castigar com ou sem motivo. Parou na entrada, estalando o dedo, e esperou que o cachorro viesse fazer festa. Otávio foi até ele, desajeitado, engatinhando e rebolando ao mesmo tempo, pra mostrar que já sabia abanar o rabo. Levou um pontapé na testa e teve que ganir, enquanto Sérgio ria. "Já! Buscar meu chinelo!" Quando Otávio volta com os dois chinelos balançando entre os dentes, Sérgio está sentado no sofá. "Tira meu tênis!" Otávio começa a morder o cadarço, tentando desamarrar. "Que foi? Tá difícil? Anda logo, meu pé tá doendo, quero me aliviar!" O tênis acaba saindo e, como Sérgio não usa meia, o pé suado pegou sujeira. "Lambe aí!" Sérgio apóia o pé na mesinha de centro e Otávio faz de conta que aquilo é igual a outras coisas nojentas e fedidas que os bichos têm de encarar. Sabe que é sua única justificativa pra suportar as baixarias sexuais que ameaçam acontecer, mas ainda espera, ingenuamente, que não vão passar da língua no vão dos dedos ou da chupada no dedão. "Que foi? O chulé tá forte? Anda, trata de lamber! Quero esse banho de língua bem dado!" Otávio obedece quieto, só se escuta sua respiração ofegante debaixo das risadas do veterano. "Agora vem cá! Lambe aqui!" Otávio olha e vê que o pau do Sérgio sai pra fora da cueca, completamente duro. Tenta recuar e recusar, mas, antes que diga "Isso não!" ou coisa parecida, Sérgio avisa: "Olha aqui, bicho, nada de macheza pro meu lado, tá legal? Ou faz o que eu mando e faz bem gostoso, ou espalho sua fama na escola toda. Ou me chupa de verdade aqui dentro ou vai ser tratado como chupador lá fora e vai ter que procurar outra república! Quero só ver você encarar essa! E aí? Anda, começa a lamber!" Otávio se lembra das brincadeiras de criança com outros moleques, do troca-troca com o priminho, e se deixa levar na viagem mental. Enquanto esfrega a língua na chapeleta arregaçada e sente o gosto do sebinho, compara e conclui que, contrastando com o tamanho do corpo, o pau do Sérgio parece até maior que o seu, e muito, muito maior que o do priminho. Mas dessa conclusão Sérgio nunca vai ficar sabendo, muito menos saberiam as namoradas que Otávio coleciona, garotas que, aliás, nunca reclamaram do tamanho de seu pau.
— Mas o Otávio contou isso numa boa?
— Pois é, diz ele que a experiência não interferiu na sexualidade "normal", tanto assim que o cara até já é avô. Mas tem outra coisa que ele disse e acho que esclarece bastante. Toda vez que os "doutores" brincavam com o "cachorro", rolava muita farra e muita risada. Zoavam com ele de todo jeito, mandando correr, pular, latir, pegar tudo quanto é porcaria com a boca, lamber escarros e ranhos assoados no assoalho. Passavam o pé na cara, chutavam e pisavam até que os ganidos soassem convincentes... mas o que não dá pra esquecer é disto: a risada dos outros era diferente da risada do Sérgio. O Sergipano ria direto no olho do Otávio, com uma intenção maliciosa que pra ele queria dizer coisas do tipo: "Você sabe o que vai acontecer quando estivermos só nós dois, não sabe? Você pode até achar que sente prazer no gosto do meu cuspe, do meu chulé, do meu sebinho ou da minha porra, mas vai ter que guardar esse segredo só pra você, nem pra mim vai confessar, não é mesmo?" Agora, é difícil dizer se era o Otávio quem lia isso nos lábios do Sergipano ou se o veterano tinha mesmo toda essa sutileza na expressão do riso.
— Tá aí uma coisa que a ficção não pode resolver, nem qualquer outra forma de arte, por mais cênica que seja... Mas e o amestramento do mascote, teve seqüência?
— Com Otávio parece que ficou naquilo: farra coletiva e sarro a dois, e o caralho do veterano sendo chupado durante aquele ano. Mas a moda pegou e outros mascotes foram "adotados" e amestrados nas repúblicas, fora os que eram tratados como animais diversos. Na mesma época também foi moda fazer os bichos comerem grama como se fosse capim...
— Ah, disso eu me lembro. Deu até num jornal que os veteranos mijavam na grama que ia servir de pasto, e até pisavam na nuca dos bichos enquanto eles "gramavam"... Mas aí já é outro departamento da zootecnia, né? Nada disso entrou nos seus contos?
— Não, Glauco, já tenho tara demais pra explorar. Deixo pra você.
— Legal. Já que não tive a chance de estudar agronomia, vou ter que imaginar como seria minha vida doméstica de cachorrinho piracicabano adotivo...
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