GLAUCOMATOPÉIA [#76]


A CHANCA E A CANCHA

SONETO 949

Melhor rivalidade não existe
que aquela entre dois times, não na bola
apenas, mas em tudo quanto rola
quando a torcida alegre humilha a triste!

O bom da humilhação, porém, consiste
nas rixas extra-campo, quando a sola
dalgum arruaceiro na cachola
do torcedor rival pisa e faz chiste!

Dizer que o Maradona ao Pelé vence
não basta: um argentino os representa,
na charge, em posição que outra dispense:

Pelé, que se ajoelha, experimenta
o gosto da chuteira e se convence,
lambendo o pé do "pibe", que este é penta!

O soneto acima me veio, bem como vários outros sobre futebol, depois que conheci Deliberaldo Braga, ex-artilheiro de várzea que hoje ganha a vida como radialista, apresentando um programa de música sertaneja para caminhoneiros fora do horário nobre. Antes de se firmar numa emissora interiorana, Deliberaldo tentou a carreira de comentarista, mas foi banido da crônica esportiva porque ia direto ao ponto, sem enrolação, mas sobretudo porque dava nome aos bois, aos vaqueiros, aos capatazes e aos fazendeiros, coisa inadmissível nesse território da "polêmica" e da "crise" postiças, seja entre os cerebrais (como Juca ou Flávio), seja entre os passionais (como Chico ou Jorge), seja entre os "malas" (como Milton ou Orlando). Na curta fase de responsável pela narração ou pela "análise" das partidas locais, Dibre (seu nome de guerra dentro e fora do campo) ficou sabendo de pelo menos o dobro das coisas que pôde comentar no ar, fofocas chamadas "de bastidor" que acabaram hibernando numa gaveta, anotadas em diversos cadernos, à espera de serem aproveitadas num livro "revelador" que nunca sairá. Mas o que me interessei em saber do Dibre não foi nada a respeito da bichice ou da viadagem deste ou daquele craque ou perna-de-pau, coisa que já sei de outras fontes. Minha curiosidade era de ouvi-lo contar alguns dos casos mais escabrosos desse acidentado terreno dos gramados varzeanos. Uma noite peguei-o de veneta na casa do Zé Maria. Aproveitando uma saída, mais ou menos demorada, do hospitaleiro poeta para buscar maconha, puxei papo com o Dibre, retomando um fio de meada desplugado:

— Mas diga lá, Dibrão, já terminou de escrever aquele capítulo da história das torcidas organizadas?

— Que nada! Aquilo é um saco sem fundo! Cada dia tiro mais coisa do baú...

— Se deixar de fora as barbaridades mais periféricas, talvez caiba tudo num livro. Aquele episódio do ABC, na sucursal da Mancha Verde, é um exemplo do que podia ser descartado, né?

— Tá falando daqueles dois que foram zoados pelos palmeirenses?

— Isso. Aqueles dois são-paulinos. Acho que eram primos, não me lembro bem.

— Só um era são-paulino, mas a camiseta do São Paulo tava por baixo duma comum. Mesmo assim foi muita ingenuidade querer comprar os ingressos justo na sede da Mancha, e logo prum clássico tão nervoso como aquele do Verdão com o Tricolor...

— O que acho estranho é ninguém ter escutado nem visto nada depois que os dois foram levados pra dentro da casa. Será que foi medo de denunciar?

— Parece que ligaram o som bem alto pra que nenhum grito fosse ouvido de fora.

— Pelo jeito o som animou a festa, já que até molequinho novo participou da sessão de esculacho...

— Não só pivetes como as namoradas dos mais velhos, que assistiram à cena sem o menor constrangimento. Os dois carinhas foram bastante judiados: andaram de quatro, rastejaram, levaram muito chute, pisão na cara, limparam o chão com a camisa tricolor, beberam mijo dos palmeirenses e até foram forçados a transar entre si, um tendo que chupar o pau do outro. Tudo na frente da molecadinha e das garotas, pra aumentar o vexame... Saíram com a cara meio inchada das porradas, mas o que doeu mais foi o arranhão na honra...

— Alguém saiu punido depois que os dois tiveram coragem de dar queixa?

— Aconteceram algumas prisões, acusações, declarações, indignações, mas tudo provisório. Depois não acompanhei, não fiquei sabendo nem se fecharam a sede local da Mancha, como foi anunciado.

— Pois é, se até um caso tão repercutido acaba esquecido, imagine as coisas mais pesadas que nem chegam aos jornais! Adiantaria incluir num livro?

— Adiantaria pra punheta dos leitores mórbidos que nem você, Glauco. Sei de situações muito piores que essa da Mancha, mas só os tarados iam querer ler esse tipo de material.

— Que tipo de situação? Lembra de alguma?

— Ah, lá na minha terra rolaram várias! Uma do seu gosto é a do goleiro Reba, que jogou por pouco tempo no meu time, o Capim Seco. No próprio apelido dele tá toda a razão da história. Ele nunca gostou de ser chamado assim, queria ficar conhecido pelo verdadeiro nome, Renê. Mas brigava com quem lembrasse que "Reba" era uma abreviação de "Rebaixadinha", que por sua vez era uma deturpação de "Embaixadinha". Foi como chamaram o Renê logo depois duma partida com nosso maior rival, o Capão de Baixo. Muito retranqueiro, esse time só vivia dos contra-ataques. Uma hora o centro-avante deles escapou sozinho carregando a bola e ficou frente a frente com o Reba, que conseguiu defender miraculosamente um chute à queima-roupa mas não evitou o choque. Caído, foi pisado pelo Frediney. Aproveitando que o goleiro continuava de bruços, meio zonzo e sem força pra ficar de pé, Frediney levantou o queixo dele com o bico da chuteira e ensaiou umas embaixadas na cabeça do capinista. Sabe como é a embaixada, né? Teve gente que viu a cara do Reba dando pulinhos com a boca em cima do pé do Frediney, mas o juiz disse que não viu por causa do bolo de jogadores que se formava em volta. Depois do quebra-pau generalizado que se seguiu, alguns de cada lado foram expulsos, inclusive o Reba, mas o Frediney continuou em campo e o jogo ficou no zero a zero. Imagine a revolta da torcida! E como, pouco depois, Reba e Frediney pararam de jogar por falta de forma, toda a revolta ficou mesmo na memória do torcedor, já que os dois continuavam indo aos jogos, um assistindo do lado dos capinistas, outro dos caponenses. A coisa voltou à tona no dia em que os dois se cruzaram e Frediney gozou da cara do Reba, perguntando se ele já tinha esquecido do gosto da chuteira. Reba partiu pra cima e se atracaram. Quem tava perto apartou, só que Frediney saiu mais machucado, prometendo vingança. Aí foi a vez do Reba rir da raiva do outro. Mas foi por pouco tempo, porque o Frediney era muito enturmado com a torcida do Capão, enquanto o Reba costumava andar mais desacompanhado. Não demorou pra que cercassem o cara: saía do supermercado pro estacionamento quando, antes de entrar no carro, viu o revólver na mão do Zóio e teve de embarcar numa perua onde o Frediney esperava com mais dois. Rodaram até a represa e, numa área gramada onde os caponenses treinavam, Reba teve que servir de bola, chutado pra lá e pra cá. Amarrado, não reagiria nem que quisesse. Frediney calçava a mesma chuteira usada naquela fatídica partida, guardada com carinho no mesmo estado em que tinha cutucado a boca do Reba no lance da defesa espetacular: já bem surrada. Reba, virado de cara pra cima, viu as travas do solado gasto quase furando seus olhos e escutou a ordem do Frediney debaixo da risada do Zóio: "Aí, frangueiro, que tal lamber? Que tal limpar antes que a chanca fique suja de sangue? Hem? Que tal essa linguinha de viado se ralando no pezão do matador, hem?" Reba só queria berrar "Filha da puta! Você me paga! Isso não fica assim!" mas o instinto de sobrevivência falou mais alto e, depois duns momentos de suspense, a língua começou a sair pra fora e a se esfregar no meio das travas, disputando espaço com a sujeira do campinho. Zóio e os outros soltavam hurras e olés como se comemorassem uma goleada. "Agora levanta! Fica de joelho!" Pra se certificar de que tinha de obedecer, Reba foi incentivado pelos pontapés do Zóio. Ajoelhado, cheio de barro e mato grudando pelo corpo, Reba deu de cara com o pau do Frediney pra fora do calção. "Quer chupar? Hem? Ou quer cair amarrado na represa? Hem? Tem de responder!" Reba quis responder "Vai se foder! Morro mas não me rebaixo assim!" mas o que Frediney ouviu foi "Eu chupo, eu chupo..." e o que o Zóio viu foi a boca do Reba se entortando pra deixar entrar só a cabeça da rola inimiga, que era tudo o que cabia, de tão rechonchuda. "Quero sentir a língua! Tá esperando o quê? Ah, agora sim! Passa na volta toda! Isso! Continua, vai mamando! Cê gosta mesmo de engolir um peru, não gosta?" Enquanto Reba torce pra que o jogo acabe logo, Frediney vira pro lado e comenta: "Tá vendo, Zóio? Não falei que ele inda ia beber minha porra? Depois da minha inda vai beber a sua!" Os outros reclamaram que também queriam gozar na boca do goleiro, e pra contentar a galera Reba fez um sacrifício a mais. Suou a camisa, fez milagre com a língua, se superou nas suas limitações bucais, mostrando que sua maior vocação não era mesmo a de guarda-metas da masculinidade ultrajada. Mas antes do apito final ainda teve forças pra implorar que não fosse jogado no lago sem que estivesse de mãos desamarradas. Teve que nadar, pegou uma gripe violenta, mas sarou.

— E ficou nisso? A vergonha passou como se fosse uma febre alta?

— Exato. Pra torcida do Capim ele contou que tinha levado uma surra e um banho. Pra torcida do Capão a história que rolou foi a versão do Frediney, mas como entre rivais só vale a fanfarronada, ninguém podia garantir se o Reba tinha felado no duro. De qualquer maneira, a revanche foi planejada. Só não se consumou porque Zóio foi trabalhar em Bauru e Frediney veio estudar em São Paulo.

— Então quem foi que lhe confirmou a veracidade das bazófias do Frediney?

— O Trivela. Ele era um dos outros dois caponenses que foderam a boca do Reba mas que se livraram da represália capinista porque Reba só reconhecia o Frediney e o Zóio. Hoje o Trivela nem usa esse apelido, é o doutor Linhares. Se formou em direito e defende gente de periculosidade muito maior que a do Zóio ou do Frediney... Mas sempre na maior "dignidade", sem apelar pro baixo calão, só pras instâncias superiores, sabe como é?

Eu ia responder com uma pilhéria quando Zé Maria voltou trazendo o bagulho, e não se falou mais em segredos de justiça nem de injustiça. Já que não fumo, Zé Maria me serviu uma travessa de brigadeiros regados a licor imitando absinto. Um cavalheiro, esse poeta.

GLAUCO MATTOSO
Poeta, letrista, ficcionista e humorista. Seus poemas, livros e canções podem ser visitados nos sítios oficiais:
http://sites.uol.com.br/glaucomattoso
http://sites.uol.com.br/formattoso
 

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