GLAUCOMATOPÉIA [#77]

A NOITE DO PORTEIRO

SONETO 914

Sumiu um par de tênis que ficava
jogado pelo chão do vestiário.
Disseram que eles eram do Romário,
mas são de quem um pênalti inda cava.

Faz tempo que seu couro não se lava,
e a cor já desbotou, dado o precário
estado a que, trancados num armário,
chegaram, e a catinga agora é brava.

Quem foi que a mão passou no tal calçado,
tão sujo que ninguém o calçaria?
Só pode ser proeza dum tarado!

Vocês verão, mais dia, menos dia,
vai ele aparecer, tendo passado,
além da mão, a língua, sua mania!

O soneto acima me veio quando, num papo com outro podólatra, confessei que nunca havia encontrado em macho adulto um chulé tão forte quanto aqueles de que me lembro enquanto ainda estudava num colégio de bairro e vivia fuçando escondido no vestiário dos alunos de educação física, onde alguns pés de tênis ou chuteira, negligentemente largados, me deixavam chapado a ponto de gozar na cueca sem sequer tocar uma bronha. Nelo, que se gabava de ter degustado mais pés que qualquer outro retifista, deu sua risadinha desdenhosa:

— Faz sentido: chulé de adolescente costuma ser tão gritante quanto o tom de voz deles. Mas você precisava provar o vaporzinho do tênis que um porteiro do meu prédio usava!

— Ah, você já se entregou aos caprichos dum porteiro, é? Só falta ser um porteiro da noite, daqueles bem carrascos...

— E era mesmo. Não nazista como aquele do filme, mas rancoroso o bastante pra descontar em mim toda a humilhação que sofreu e remoeu...

— Essa você tem que me contar em detalhe!

— Aquilo é que era chulé, Glauco! Acontece que isso rolou ainda nos 70, quando os condomínios obrigavam os funcionários a usar uniforme, lembra?

— Claro. Mas no prédio onde morei o uniforme só incluía sapato, ninguém podia trabalhar de tênis, pelo menos na portaria...

— Aí é que tá! Esse porteiro era novo no emprego, pouco experiente e pouco acostumado a receber ordens ou instruções. Achou que no turno da noite a coisa não era tão rigorosa e começou a vir de tênis, daqueles bem brancos, que pegam sujeira com a maior facilidade e chamam a atenção de qualquer jeito, limpos ou sujos. Coincidiu que eu entrava no prédio bem na hora em que a síndica dava uma bronca no rapaz. Era uma perua insuportável, cheia dos fricotes, que comia mortadela e arrotava fiambre. O coitado ficou com a cara no chão. Pra ser mais exato, a cara dele só faltou servir de capacho pro salto agulha da madaminha. Nem sei se a vergonha maior foi ter sido esculachado por uma mulher ou ter passado por aquilo na minha frente. Mesmo que eu fosse discreto e minha fama não estivesse espalhada no prédio, algum funcionário já tinha notado que as minhas visitas nunca eram femininas, e os comentários sempre passam pela portaria.

— Você morava sozinho?

— Pois é. Mamãe passava às vezes pra me levar um doce de batata-doce, mas quase sempre quem aparecia era um namorado meio firme que tive naquela época. Então, depois daquela cena passei uma vez pelos fundos do prédio, porque o elevador da entrada social estava quebrado. Ao lado do elevador de serviço ficava um quartinho que servia de vestiário pros funcionários. Dois deles, que tinham trocado de roupa e já estavam de saída, comentavam qualquer coisa sobre o novo porteiro. Enquanto esperava o elevador, apurei o ouvido e escutei: "Porra, isso fede que nem cachorro!" "Cachorro morto!" (falava o colega) "De quem é isso, do Odair?" "Ele tem que dar um jeito de guardar esse tênis noutro lugar!" Ah, não tive dúvida: esperei eles se afastarem e entrei no quartinho. Glauco... aquele chulezinho defumado tinha tomado conta do ambiente. Mesmo quem tá acostumado percebe que é fora do comum. Não resisti: passei a mão naquele par de quedes, enfiei na sacola de compras que trazia comigo e subi correndo pro apê. Deixo você imaginar quantas vezes gozei. Só lhe digo que aspirei tanto aquele chulé que até gastou. No dia seguinte tinha diminuído...

— E o Odair? Foi pra casa de sapato?

— Deve ter ficado ainda mais puto, achando que até os colegas estavam de perseguição contra ele. Mas, pra não deixar o cara no preju, dei uma lavada no tênis e tratei de colocar no mesmo lugar, dois dias depois.

— Me fala do tênis! Quero mais detalhe, Nelo!

— Ah, não era novo nem velho. Comum, de pano, desses de amarrar. Era branco mas estava encardido. Por dentro é que o bicho pegava: a palmilha tinha virado uma poça de suor acumulado, estava marrom de sujeira. Depois que cansei de lamber ficou cor de café com leite...

— E o gosto?

— De toucinho, que nem o cheiro. Divino, Glauco!

—É, Nelo, estou vendo que, cada vez que batemos papo, aumentam meus motivos pra invejar você...

— Então se prepare pra ter um motivo a mais: eu não degustei só o tênis do Odair...

— Ah, eu sabia! Estava demorando...

— Também achei que demorou, porque eu não tinha jeito de chegar nele, sabendo como estava no veneno. Por ironia, justamente porque o veneno se agravou é que eu consegui. Foi assim: naquela época não tinha tanta insegurança, a gente podia deixar uma cópia da chave na portaria, pro caso dalguma emergência ou pra que uma empregada fosse trabalhar na ausência dos patrões. Pra minha chave a instrução era que só fosse entregue à faxineira durante o dia e ao Lúcio (meu namorado), que costumava vir tarde da noite. Mamãe só vinha quando eu estava, mas uma noite ela apareceu de surpresa, trazendo um curau, e, como eu tinha saído, pediu a chave. Odair, que estava de plantão, reconheceu a velha e entregou. Aí foi minha vez de perder a paciência com ele. Esqueci do tênis, do chulé mágico, de tudo, porque mamãe entrou no apê quando não podia ter entrado: muita coisa estava fora do lugar, revistas, fotos, vídeos, um monte de material comprometedor... Resultado: mais um esculacho no Odair. Quando foi mais tarde, o edifício todo já sem movimento, não é que ele deu uma subida até meu apê só pra tirar satisfação?

— Como assim? Saiu do sério? Abandonou o posto?

— Acho que pediu pro garagista ficar no lugar dele enquanto ia no banheiro. Eu ainda não estava dormindo quando tocou a campainha. Pensei que era o vizinho do lado, com quem trocava receitas de pudim, e dei com o Odair parado no corredor, cara transtornada de raiva, suando e gaguejando. Falou meio no atropelo, mas entendi umas coisas tipo "Você deixa qualquer um entrar e pra sua mãe não pode dar a chave? Eu é que tenho de pagar o pato se você recebe um amiguinho mas não deixa sua mãe entrar?" Não me lembro se algum xingamento tipo "bicha" ou "viado" se engrolou no meio, mas fiquei tão surpreso com a atitude dele que nem tive reação. Ele aliás nem esperou e me deixou plantado na porta, enquanto voltava rápido pro elevador. Fechei a porta e fiquei meditando um pouco, recostado na poltrona onde ouvia meu som no fone. Aquilo tinha sido um descontrole momentâneo, não era natural nele, a não ser pelo bafinho de cachaça que senti enquanto ele desabafava. Muita pressão, e o cara perde o senso do limite. Pensei: se eu reclamo pra síndica ele tá na rua. Mas se eu não reclamo, passo por banana. De repente me vem a saída: tirar proveito da situação...

— De que jeito?

— Veja só: espero até o dia seguinte e, quando ele tá distraído lendo a manchete de estupro no jornal descartado por um condômino, chego de supetão na cabine e vou direto ao ponto. Digo: "Pode ficar sossegado. Não vou dar queixa de você, Odair. Você sabe que se um morador faz uma reclamação dessas é demissão na certa. Mas eu sei que você tem motivo pra ficar com raiva, e não é só de mim. Estou disposto a fazer uma coisa: eu é que vou pedir desculpa pra você. Mas vou pedir dum jeito bem humilde, saca?" Odair passou do susto ao espanto. "Fica só entre nós, certo? Eu vou me ajoelhar pra você, vou me colocar debaixo do seu pé. Mas debaixo mesmo, com a boca, tá entendendo?" A beiçola dele se arreganhou numa espécie de risada misturada com careta de nojo, desprezo, alívio, desforra, pressentimento do gozo, tudo junto. Mas o que importa é que ele percebeu que eu queria compensar humilhação moral com humilhação oral. Antes que respondesse, deixei bem claro: "Amanhã você chega mais cedo e sobe direto pro meu apê. Sem tirar o tênis, certo? Quem vai tirar sou eu. E nada de passar desodorante no pé, hem? Aqueles produtos ardem muito na língua..." Minha risadinha terminou de descontrair o cara. No olho dele dava pra perceber que tinha entendido. Pude ver o brilho da vingança naquele olhar, Glauco!

— E ele foi?

-- Que dúvida! Além de não ter escolha, estava era louco pra descontar o que tinha engolido. Quem ia engolir agora era eu, depois de lamber até que o suor secasse junto com a saliva. Chupei uma rola quase tão fedida quanto o pezão, mas acho que maior que o orgasmo dele foi o prazer psicológico de me ver no chão, agachado na frente da poltrona, da minha própria poltrona, enquanto ele se refestelava e nem se dava ao trabalho de desamarrar o tênis. O cadarço eu desatei com o dente, a biqueira eu abocanhei até descalçar cada pé, a meia eu tirei com a língua, com uma ajudinha dos dedos na hora de soltar do calcanhar... mas o espetáculo do cheiro sendo absorvido era invisível, Glauco, só na imaginação dava pra notar aquela nuvem de fumaça se afunilando e sendo tragada pelo meu nariz, pela minha boca... como se fosse um ralo escoando uma banheira cheia de água podre...

— Que imagem, Nelo! Até parece que você é que é o poeta!

— Que nada! Nesse ponto sou eu que tenho motivo pra invejar você. Aposto que vai escrever um soneto contando a cena como se fosse
acontecida com você.

— Talvez. Mas sempre faz mais efeito quando a gente conta a verdade, né?

Nelo não teve o que responder. Estávamos os dois de pau duro só de comentar o fato. Isso bastava pra dispensar qualquer argumento.

GLAUCO MATTOSO
Poeta, letrista, ficcionista e humorista. Seus poemas, livros e canções podem ser visitados nos sítios oficiais:
http://sites.uol.com.br/glaucomattoso
http://sites.uol.com.br/formattoso
 

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