GLAUCOMATOPÉIA [#78]
DINHEIRO SUADO
SONETO 600
Concursos e torneios, há de tudo:
quem mais distante lança sua saliva,
quem come mais barata ou lesma viva,
quem é mais cabeludo ou mais membrudo.
Eu mesmo não disputo, mas ajudo:
jurado sou num show do qual se esquiva
a nata julgadora, e só olfativa
é minha atribuição. Não sou sortudo?
De tênis podres, esse é o campeonato,
e só de adolescentes é o confronto.
Recebe o vencedor novo sapato.
Eu fico com o velho. Nem lhes conto
o zelo com que o guardo e com que o trato
até que perca o odor que me pôs tonto!
SONETO 700
Concurso lanço. O artigo determina
que só pé de machão se candidata,
qual for de nascimento seja a data.
O resto nestes termos se defina:
Parágrafo primeiro: a sola fina
ou grossa pode ser, desde que chata.
Calçado não importa se alpargata,
se tênis, se sapato ou se botina.
Segundo: o polegar, dito "dedo",
será, no comprimento, menos longo
que o dedo "indicador", mas largo o vão.
Terceiro: reprovados pelo gongo
serão os que nas unhas trato dão.
Chulé se exige. Aqui nem me delongo.
Os sonetos acima me vieram, em diferentes ocasiões, quando fui interpelado a respeito dum artigo que publiquei no gibi CHICLETE COM BANANA, editado por Angeli na década de oitenta. Minha postura punk e minha poesia escatológica eram já bem manjadas, mas a molecada ficava intrigada quanto à veracidade dos tais campeonatos de tênis podres nos Estados Unidos e, sobretudo, da minha participação neles como jurado. Mas o que pouca gente sabe é que aqui no Brasil já fizeram coisa semelhante, e justamente por causa da minha matéria na revista. Claro que, na época, eu ainda não tinha perdido totalmente a visão, razão pela qual não gravei na memória apenas as impressões olfativas e gustativas.
Tudo começou quando a banda Punkadaria me pediu letra para um som que deveria ser incluído no segundo disco, ainda em vinil. Escrevi uma intitulada "A mulher que se disputa" e, no dia em que o vocalista Maskarão veio buscar a encomenda, viu o gibi do Angeli na pilha de zines.
– "DOGRAS"? Que porra é essa? (e apontava para a capa da revista)
– É "DROGAS", mas o Angeli gosta de trocar umas letrinhas pra encher o saco dos leitores que mais sacam...
– Falar em letra, cadê a nossa parceria?
– Tá aqui. Bati à máquina e tirei cópias pra facilitar.
Maskarão bebeu meio copo de coca, arrotou estrondosamente (de propósito, a fim de impressionar quem não estivesse acostumado) e leu em voz alta:
Ela é mina de família,
Dizem que é uma grande filha!
É beata que se preza
E quando ajoelha, reza!
Sempre foi compenetrada,
Já virou mulher letrada!
Nem de frente nem por trás,
Nunca entrou nenhum rapaz
No seu quarto de solteira
Pra sentar na sua cadeira!
Nunca teve o menor vício:
Mas que puta desperdício!
Todo mundo lhe cobiça
O cu que nunca viu piça,
A buça que tem bigode,
A boca que ninguém fode!
Mas eu é que sou feliz,
Porque tenho o seu nariz,
Já que a mina é dependente
Dum prazer bem diferente:
Cheirar droga inda mais fina
Que rapé ou cocaína,
Mais vulgar que a pior cola:
Algo que arde em minha sola!
Na hora que tiro o tênis,
A melhor das higienes
É ver meu chulé podrão
Encher todo o seu pulmão!
– Vai dar um trabalhinho pra decorar, mas bate com a base melódica que vocês tinham me passado.
– Não, Glaucão, é isso mesmo! Eu não queria uma letrinha de dois versos e um refrão. Disso a gente já gravou um monte. Eu queria um troço assim, mais elaborado, mesmo. Você pegou bem o espírito da coisa.
E leu de novo, cantarolando no ritmo, pra testar a métrica em redondilha. Enquanto fui ligar o som pra mostrar ao Maskarão um LP dos Ruts do qual costumo falar maravilhas, o rockeiro pegou o gibi de cima da pilha e ficou folheando. Quando suspendemos a audição, ele abriu na página daquele meu artigo e fez questão de reler algumas passagens deste texto:
"Cês querem saber? Eu não agüento mais ouvir falar no vedetismo de fulano que ganhou palma de ouro alhures, ou do estrelismo de sicrano que venceu a bienal de não sei onde, ou da tietagem em volta de beltrano que foi traduzido na puta que o pariu & premiado na casa do caralho. Eu, Glauco Mattoso, lhes digo: também tenho minha fama no exterior, que só não foi reconhecida aqui porque, graças ao nosso habitual atraso, ainda não promovemos o tipo de evento que me consagrou. Trata-se dos campeonatos de chulé, que acontecem anualmente em várias cidades norte-americanas, como Hartville (Ohio) ou Montpelier (Vermont), e que já têm alcance mundial, atraindo competidores de vários países. Os vencedores entram pro Hall of Fumes, à semelhança do Hall of Fame, a célebre galeria dos astros da música country em Nashville. Pois fiquem sabendo que já venci o International Rotten Sneaker Contest (Campeonato Internacional de Tênis Podres) com um pé nas costas. Simples: pedi emprestado um par do Pedro o Podre, já bem curtido, calcei e me mandei pros States. Isso foi em 1980, quando o concurso só existia havia cinco anos. De lá pra cá voltei a participar em outras ocasiões, desta vez como juiz, já que minha experiência de apreciador de chulé deixou os americanos boquiabertos. Agora todo ano os organizadores insistem em me convidar com tudo pago, mas quase sempre sou obrigado a recusar, pra não desgastar a imagem e me fazer de difícil. Na verdade, difícil mesmo é julgar tantos concorrentes, cada vez mais jovens & chulepentos. No ano passado, em Newburyport (Massachusetts), aceitei ser 'juiz de tênis' (stinky-sneaker judge) no torneio local de tênis fedidos (Smelly Sneaker Contest) que valeu como semifinal pro 15º Campeonato Internacional realizado em Montpelier. O ganhador foi um moleque de 13 anos vindo de Salisbury, cujos tênis tive que reconhecer como 'uglier and more disgusting than all the rest'. Na minha súmula acrescentei: 'They (os pisantes) were filthy, rotten, dirty, full of holes, and they stunk really bad'. O garoto havia encardido & 'defumado' os tênis andando de bicicleta. Meus colegas de comissão julgadora foram: uma mãe, um professor de educação física e um cachorro treinado. Todos concordaram com a pontuação que dei pro garoto, inclusive o 'corporate sponsor' (patrocinador) do evento, ligado à indústria de desodorantes e aos laboratórios universitários de microbiologia. O garoto calçava um cano alto de lona, tipo favorito ao apodrecimento mais tresandante (e bota andante nisso), mas isso não quer dizer que os de couro ou nylon fiquem em inferioridade: num torneio regional do meio-oeste (First Midwest Regional Rotten Sneakers Contest) ocorrido em Hartville na mesma temporada, um skatista de 15 anos residente em Uniontown foi sério candidato à vitória usando um cano alto de couro branco, ou melhor, ex-branco – embora o 1º lugar tenha ido pruma garota de 12 anos com um par de lona recuperado duas vezes da lata de lixo à revelia da tia, que acabou se conformando quando soube que a sobrinha tinha conquistado o direito de defender sua cidade na final internacional. Ali em Hartville os juízes foram cinco: uma mãe, um farmacêutico, um professor de educação física, um convidado de honra e um cachorro. Pra ser um bom 'odor-eater', como eles chamam os 'juízes de tênis', não basta saber aplicar os critérios de avaliação que mensuram quanto um tênis tá gasto, sujo, suado e chulepento; tem que ter sensibilidade pra discernir os chulés mais salgados no meio de outros odores altamente concentrados na narina, já que o tênis é cheirado por dentro e por fora, em várias distâncias, calçado e descalçado. Como declarei à imprensa americana , costumo dizer que 'I'll be on the look out for sneakers that satisfy my 10-foot formula. If I can smell them from 10 feet away, they're in the running; 20 feet, a definite contender; 30 feet, a ferocious shoe-in'. Em termos pouco aproximados, uso a 'fórmula métrica': se consigo sentir o chulé a um metro de distância, o cara tá classificado; a dois metros, é finalista; a três metros, favorito ao 1º prêmio. Isso vale não só propisante, mas pro próprio pé, pois também fui jurado em testes de meias e pés descalços, análogos aos de tênis podres. Enfim, posso não ter ganho nenhuma palma de ouro, mas uma sola de ouro eu bem que merecia. Que cês tão pensando? Não sou pouca porcaria!"
– Cara, cê se liga mesmo nessa de pé fedido, hem?
– Digamos que não é o único, mas um dos meus temas prediletos.
– Mas você esteve mesmo nos States?
– Como concorrente, não. Falei só pra criar clima. Mas fiz parte duma comissão julgadora, sim, levado por um poeta underground que me hospedou lá e sabia da minha fama de fetichista.
– Glauco, vou te falar uma coisa: os punks de lá eu não sei, mas os daqui iam abiscoitar tudo quanto é prêmio se alguém promovesse um torneio desses! Nosso baterista mesmo seria sério candidato, cara!
– Quanto desperdício! Bem que algum louco podia copiar essa moda americana, né? Copiam tanta coisa careta e brega...
– Em vez de ficar perguntando, por que não damos uma resposta? Que tal um concurso desses aproveitando o show de lançamento do nosso LP? Você toparia ser juiz?
– Só! Mas quem vai organizar?
– Deixa comigo. Se não descolar patrocinador oficial, eu arranjo um alternativo, nem que seja pra avacalhar a fórmula.
– E se o baterista se classificar? Vão dizer que foi marmelada...
– Ele pode ser "hors-concours". Não é assim que se fala?
Maskarão levou avante a idéia e, três meses depois, a gravadora conseguiu patrocínio duma marca de artigos esportivos e convidou, além de mim, um técnico de basquete universitário e um veterano vice-campeão de skate. O concerto foi no Projeto SP, na Barra Funda, tendo sido a finalíssima encaixada no intervalo entre a apresentação da banda que abriu a noite (os Inadimplentes) e o show da Punkadaria. Mas não foi essa premiação final (vencida por um carteiro) que me propiciou material para este conto, e sim as sessões classificatórias, que tiveram lugar dias antes no ginásio dum time de basquete.
Quase oitenta voluntários compareceram, atendendo à convocação veiculada no rádio e numa revista de rock. Uma triagem sumária bastou para eliminar os que se acreditavam o terror da classe mas trocavam de meia à primeira reclamação da professora ou da namorada. Sobraram apenas vinte fortes concorrentes, dos quais sairiam os cinco finalistas. Só eu me encarreguei dessa etapa qualificatória, e um único candidato foi quem teve cara de pau para se descontrair comigo além das habituais piadinhas em torno do poder "dopante" do chulé e do perigo da "dependência" entre soldados, office-boys ou motoqueiros. Chegada sua vez, o extrovertido molecão se sentou na cadeira de braços ao lado da mesa onde eu fazia as anotações. A posição da cadeira permitia que o ocupante erguesse a perna e comodamente apoiasse o pé direito na beira da mesa.
– Só deixa o tênis desamarrado. Afrouxa a lingüeta. Isso. Agora põe o pé aqui e deixa que eu tiro. Tem que ser com calma pra ir sentindo aos poucos...
– Já saquei, Glaucão, cê não quer perder nem um bafinho, né? Tá viciado só no cheiro? Ou no gostinho também?
Desviei o olho do papel e do pezão, e encarei o garoto. Sorria com o mais desinibido dos cinismos. Meio surpreso, adiei o assunto:
– Antes tenho que ver se o cheiro merece resposta.
Laércio já tinha dado nome, idade (19), profissão (balconista numa loja de discos), número do sapato (42) e marca preferida (All Star importado). Naquela oportunidade calçava um Converse azul de cano alto, que fui puxando devagar, sem aproximar o nariz. Mesmo antes de soltá-lo do calcanhar, foi possível distinguir a exalação da meia branca. Retirado do pé, segurei o tênis de acordo com o procedimento-padrão dos juízes americanos: a palma da mão sob o solado, o bico do calçado voltado para o pulso, de modo a encaixar o cano no nariz como se fosse uma máscara de oxigênio, calcanhar virado para cima. Desse modo a narina absorve mais diretamente as emanações que sobem do interior do tênis, oriundas do ponto crítico onde se acomodam os artelhos e onde o chulé atinge seu teor mais elevado. O impacto foi sensacional. Inalei longamente aquele vapor morno e concentrado, fechando os olhos para melhor apreciar as nuances odoríferas durante a passagem do ar pelas fossas nasais. Ao afastar o pisante da cara, deparei com o pezão ainda apoiado no mesmo lugar, a meia empapada de suor, escurecida por baixo, a mancha de umidade formando o contorno da sola, enquanto Laércio mexia os dedos provocativamente.
– Que tal, Glaucão? Não acha que já ganhei?
– Classificado cê já tá. A chance é grande.
– E se você provar o gosto? Será que aumenta a chance?
Como os demais candidatos aguardavam do lado de fora da sala, dava para levar um papo particular, ainda que rápido. Contei com a sorte, já que a garota do Maskarão (que atuava como empresária da banda) podia entrar e sair a qualquer momento, não para me patrulhar, mas para passar a todos a sensação de que aquilo não era putaria disfarçada. Vendo que o carinha dava a deixa, fui objetivo:
– Não posso garantir porque não vou julgar sozinho. Mas se você não vencer lhe dou um prêmio de consolação bem mais valioso, que tal? Um prêmio só pelo gosto, sem contar o cheiro.
– Prêmio em dinheiro?
– Se você quiser.
– Tá topado. Quer uma amostra grátis?
Antes que ele tirasse a meia, eu mesmo acompanhei seu gesto de mão e desnudei aquele pezão branquelo. Não era de dias a geléia que se cumulava entre os dedos magros e compridos: era simplesmente o resultado dum único expediente de trabalho após um banho matinal e a roca de meia, mas o suficiente para reativar uma verdadeira usina bacteriana e impregnar o pano e a palmilha. Para não protelar demais a sessão, caí de boca no mindinho e chupei-o até o vão, passando repetidamente a língua em volta. Fiz o mesmo em cada dedo, mas do dedão só dei um beijo na ponta. Laércio abriu ainda mais seu sorriso descarado:
– Vai deixar o melhor pra chupar depois, né? E de outros cheiros, cê também gosta?
– Se forem assim tão fortes...
– Dependendo do prêmio, concorro em várias categorias, cara!
– Então vamos deixar em aberto. Na hora a gente vê.
Trocamos telefones e, quando ele se levantou para dar lugar ao próximo candidato, pude notar o volume sob o zíper dos jeans. O meu ele não podia conferir porque a mesa me dava cobertura, mas Laércio sabia, pelo calor da minha língua, que aquela seria, disparado, minha maior ereção do dia e minha principal punheta por muitas noites.
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