GLAUCOMATOPÉIA [#80]
NEONAZISMO EXPLÍCITO NA TV
[1] Como sou cego, não estou entre os telespectadores, mas entre os audioespectadores de televisão. Tratando-se de TV, nenhuma enquete deveria indagar do que a gente mais gosta, e sim o que mais odiamos. Podemos meramente gostar de alguma coisa no meio da programação, mas as coisas mais odiadas nunca o são com a mesma indiferença duma opinião favorável. Invariavelmente, gostamos com desânimo e odiamos com veemência. Pois bem, se me perguntarem o que mais odeio na telinha falante, direi: depois dos intervalos comerciais (cuja duração aumenta dia a dia, a ponto de superar o tempo dos blocos dos programas) que só repetem frases gritadas tipo "Venha correndo!", "Ligue já!" ou "Só até sábado!", sem dúvida a frase mais antipática é aquela repetida nos noticiários, abrindo pelo menos uma matéria por dia. É a maldita, a desgraçada, a insuportável "UMA PESQUISA REVELA...", que antecede novas e surpreendentes "verdades" científicas, quase sempre na área da alimentação e nutrição.
[2] Um dia descobrem que o açúcar faz mal. No dia seguinte, inventam que o ovo faz mal. Hoje anunciam que carne faz mal. Amanhã vão chegar à conclusão de que peixe faz mal. Se depender desses "pesquisadores" e do telejornalismo, nada pode fazer bem. Toda vez que ouço o indefectível pregão "Uma pesquisa revela..." sei que alguém testou e comprovou que alguma coisa de comer faz mal. Quando todo o cardápio da semana está esgotado, eles repetem o prato e vêm com outra pesquisa para confirmar aquela divulgada na semana anterior, a fim de que não se perca a validade e o prato continue fazendo o mesmo mal. Ou que faça ainda mais mal que na semana passada.
[3] Ora, venho de família italiana, e todo mundo sabe como os italianos dão valor à boa comida. Basta lembrar que os principais provérbios italianos são, na maioria, referentes à culinária. Lá em casa o mais citado ditado era "Mangia, mangia, che ti fà bene!". Traduzindo: não é isto, ou aquilo, que faz bem; o que faz bem é comer bem. Lembrando que, para um bom descendente de Torrezani ou de Canettieri, comer bem significa comer de tudo e comer bastante. Criança saudável, no meu tempo (e nem faz muito), era criança que engordava a olhos vistos, isto é, bem alimentada. Antes que alguém coloque em dúvida a importância das tradições familiares, vou logo deixando claro que dou inteira e irrestrita razão às "mammas" e "nonnas", em detrimento de qualquer palpiteiro metido a reformador da natureza. Resumo da ópera: é óbvio, ETERNAMENTE óbvio, que ovo ou leite não fazem mal. O que faz mal é estricnina ou arsênico, mas pelo jeito os charlatães americanos vão decretar, amanhã mesmo, que uma pesquisa revela como os veneninhos ajudam a emagrecer.
[4] Sim, porque esse negócio de espalhar que os comestíveis mais essenciais fazem mal só podia ser mesmo coisa de americano. Café com leite, pão com manteiga, arroz com feijão, bife com fritas, mamão com açúcar, Romeu e Julieta, pipoca com sal, água com gás -- TUDO faz mal, segundo os patrulheiros da caloria e do colesterol. E quem são esses beneméritos paladinos? Professores e doutores americanos, do Instituto Fulanian, da Universidade John Sicran ou da Philanthropic Foundation of the Joseph Beltran Memorial Hospital. Incansáveis benfeitores da humanidade, graças a esses potenciais candidatos ao prêmio Nobel de medicina somos brindados diariamente com a indispensável informação de que aquilo que comemos de manhã, ao meio-dia e à noite faz um mal danado.
[5] Acontece que esse mal danado jamais seria feito à nossa sagrada digestão se não fosse pela TV. Bastava que os telejornais não veiculassem o terrorismo desses xiitas do fundamentalismo pentelhocolesteral, e aqueles aiatolás dos diabos ficariam falando sozinhos no meio de meia dúzia de fanáticos freqüentadores de congressos científicos. Logo, a culpada pelo bombardeio alarmista é a praga da TV.
[6] Mas com que intenção as emissoras se prestam a servir de porta-vozes dessa laia de espíritas-de-porco? Que a TV é movida a patrocínios e pressões político-econômicas, nada a estranhar. Mas o que me intriga é a seguinte questão: Que raio de lobby tão poderoso é esse dos xiitas da mesa posta, capaz de vencer a concorrência da indústria e do comércio de produtos alimentícios, capaz de desafiar as multinacionais do laticínio, das frituras ou dos doces? Donde viria essa influência tão esmagadora a ponto de contrapontear cada intervalo comercial com uma "reveladora" pesquisa sobre os malefícios da lasanha verde, do queijo amarelo, da carne vermelha ou do chocolate branco? Quem são e com que dinheiro esses diabólicos cientistas malucos invadem nossa casa, nossa mesa e nosso prato?
[7] Depois de pôr para funcionar meu sexto sentido e minha percepção extra-sensorial, cujo desenvolvimento devo à cegueira e ao misticismo que de mim fizeram um bruxo assumido, constatei que os tais pesquisadores, apóstolos e prosélitos do vegetarianismo camuflado de comida "diet", "light" ou "soft" são todos, na verdade, membros duma mesma confraria internacional: a Ordem Secular Tomasiana, cuja sede principal é a própria Organização Mundial da Saúde. Adeptos duma corrente mais pragmática do nazismo, que preconiza o elitismo totalitário a partir do monopólio sobre o maior de todos os prazeres mundanos, ou seja, o paladar, os discípulos de Frei Tomás se encastelaram nas instituições científicas e, por trás da fachada da OMS, a OST conspira globalmente para usurpar do dito cidadão comum o mais elementar de todos os direitos humanos: o direito à busca da felicidade, consagrado pelas declarações universais e pelas constituições democráticas como a dos Estados Unidos. Ora, todas as pesquisas já revelaram que a felicidade humana não está no poder nem no dinheiro, no intelecto nem na libido, na longevidade nem na juventude, no trabalho nem no lazer. Está numa guloseima ou num quitute, num quindim ou num torresmo, algo tão acessível à maioria das populações que joga por terra todas as vantagens preciosamente colecionadas pelas aristocracias e oligarquias ao longo da História.
[8] A pista que me levou à descoberta da existência e dos propósitos maquiavélicos da OST surgiu diante de mim durante uma banal consulta ao gastroenterologista, a quem ingenuamente me queixei da prisão de ventre que me acompanha desde a adolescência e se agravou após os quarenta, com a perda da visão e o conseqüente estresse. Antes de prescrever a fatal dieta "antifermentativa" ou coisa que o valha, o esculápio me submeteu a exaustivo interrogatório. "Gosta de lingüiça calabresa?" Respondi que sim, com a maior naturalidade, como se me tivessem perguntado se gosto da justiça, da honestidade ou da beleza. "Tem que parar de comer!", sentenciou, seguindo com as perguntas. "Gosta de brigadeiro?" "Gosto!" "Gosta de bolinho de bacalhau?" "Gosto!" "Gosta de pudim de leite condensado?" "Gosto!" A cada resposta, atalhava: "Tem que parar!" No final, ele tinha listado como proibidas todas as iguarias que confirmei apreciar; em contrapartida, relacionou todas as minhas aversões gastronômicas como ítens obrigatórios da dieta indicada para o meu caso. Coisas tão inapetecíveis que já nem me vêm à lembrança.
[9] Na hora não me dei conta de que a refeição permitida só incluía ingredientes dos quais eu respondera não gostar. Mesmo assim, já me sentia, ao sair, mais deprimido do que quando entrara naquele consultório. À porta, estendi-lhe a mão, que o médico apertou com sensível desdém. Mas foi o suficiente para que a experiência táctil do cego reconhecesse o contraste entre minha mão esguia e os dedos grossos e rechonchudos que a tocavam. Mais tarde, em casa, deduzi que aquele respeitável especialista estava gordo e realizado, de tanto comer lingüiça calabreza, brigadeiro, bolinho de bacalhau e pudim de leite condensado.
[10] Elementar, meus caros Watsons. Do alto daquela irreprochável "autoridade científica", os caras analisam caso a caso. Interrogam o paciente, listam suas preferências como contra-indicadas e suas ojerizas como recomendadas. O intuito? Fazer com que o cliente se sinta ainda mais infeliz do que já era, baixando-lhe a qualidade de vida por meio do bloqueio daquela que é comprovadamente a mais disponível fonte de prazer terreno: a gororoba, o grude, a bóia, o regabofe, ou, como diriam os gregos, o manjar, a ambrosia. Só assim eles podem se considerar uma minoria privilegiada, aquela casta intangível que pode comer o que quiser enquanto as castas inferiores irão comer apenas o que lhes for permitido pela ciência manipulada por eles, os infalíveis oráculos do estômago alheio.
[11] A esta altura, certamente terá ocorrido a algum advogado do diabo objetar se tenho alguma prevenção contra os vegetarianos. A única resposta lógica é a negativa. Até porque também como vegetais, desde que fritos ou, se não forem fritos, venham acompanhados de carne ou ovo frito, por exemplo. Se alguém quiser ser exclusivamente vegetariano, muçulmano ou republicano, tudo bem, desde que não insista em me catequizar. O que não posso admitir passivamente é que camuflem o vegetarianismo, o fundamentalismo ou o partidarismo sob a capa do dogma científico, ainda por cima sujeito a permanente revisionismo estatístico e veiculado como fato jornalístico pelo mais massificante de todos os veículos do consumismo: a televisão, em seu horário nobre.
[12] A outro advogado do diabo ocorrerá que a OST estaria perdendo tempo, na medida em que a maioria da população telespectadora jamais seria persuadida por campanha alguma a abrir mão de seus hábitos alimentares, e portanto ficaria sempre frustrado o tão almejado monopólio do paladar pelos mafiosos da conspiração neonazista. Aí é que reside o equívoco. Bombardeadas pela propaganda televisiva, as massas continuam comendo as massas, mas ao peso do estômago soma-se o peso da consciência, inculcado pela noção do "risco à saúde", o que certamente afetará as digestões e os sonos, contribuindo para deteriorar a qualidade de vida dos cidadãos. Enquanto isso, os estraga-prazeres da OST estarão comendo as mesmas massas sem sentimento de culpa, o que lhes aguçará o apetite e lhes fará bom proveito de todos os opíparos acepipes que paparem.
[13] Portanto, ainda que psicologicamente, os mafiosos vão logrando êxito logrando incautos. Não estou entre os incautos, mas nada posso fazer para alertar as massas hipnotizadas diante da telinha, mesmo porque a poesia tem ínfimo alcance comparado ao da literatura médica. Ainda assim, lavro aqui e ali um ou outro tento, quando alguns de meus poemas antinazistas são musicados ou lidos na TV, como aconteceu com o soneto "Preguicista", gravado pelos punks da banda Inocentes e degustado por Marcelo Tas durante a entrevista que dei ao programa "Vitrine" da TV Cultura. Remato esta verrina reproduzindo três líricos libelos do gênero, entre os quais o decantado "Preguicista" e seu gêmeo "Torresmista". Pelo menos os punks (exceto os straight edges, é claro) captam o potencial contestador de meus desabafos. Já é alguma coisa para um cego munido apenas dum controle remoto, no qual se destaca a surrada tecla MUTE, que parece rimar com "Lute!"...
SONETO MAGRO
Coitado de quem teme ser obeso,
pois vive se privando dum bom prato,
comendo só ração, porções de mato,
de olho nos limites do seu peso.
À estúpida dieta o cara é preso.
Magérrimo, parece estar, de fato,
num campo de extermínio, sob ingrato
regime de castigos e desprezo.
Costelas tem à mostra, e inda se acha
saudável! Se mulher, beleza pura,
do seu colesterol medindo a taxa...
Babaca! Enquanto malha na tortura,
seu sábio e nédio médico relaxa
e vai se empanturrando de fritura...
SONETO TORRESMISTA
Não basta a ditadura que já dura
e vem a ditadura antigordura!
Saímos do regime militar,
caímos no regime do regime.
Censuram-nos até no paladar!
Trabalho, horário, imposto, compromisso.
Orgasmo não se tem como se quer.
Só sobra o bom do garfo e da colher,
e os nazis nariz metem até nisso.
Maldita seja a mídia, sempre a dar
espaço à medicina que reprime!
Gestapo da "saúde" e "bem-estar"!
Resista! Coma! Abaixo a ditadura!
A luta tem um símbolo: FRITURA!
SONETO PREGUICISTA
Não basta a ditadura da injustiça
e vem a ditadura do magriça!
Caímos no regime do exercício,
egressos do regime militar.
Censuram a poltrona como vício!
Dever, serão, cobrança, obrigação.
Mal temos um tempinho de lazer,
e os nazis o nariz querem meter,
impondo-nos o esporte e a malhação.
O tempo é precioso. Desperdice-o!
Senão a gente ainda vai parar
num eito, num presídio ou num hospício.
Resista! Durma! Assuma esta premissa:
A luta tem um símbolo: PREGUIÇA!
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